Mito

De Dicionário de Poética e Pensamento

1

Hoje as ciências cognitivas, antigas ciências do espírito, já se dão conta de que é essencial trazer para a questão não só a vida do homem, mas também sua vida experienciada no cotidiano. Porém, do cotidiano enquanto ordinário sempre falaram as artes, não para reproduzi-lo, mas para surpreendê-lo e apreendê-lo na dimensão do extraordinário. Porque entre um e outro é que se dá o vigor do poético, o ditar do sagrado enquanto energia de sentido e linguagem que a tudo realiza. Por isso, o mito se dá sempre no entre acontecer dos ritos enquanto vigorar dos mitos, ou seja, no mítico. Quando os ritos representam e esquecem os mitos, começa a necessidade de criar o simbólico. As ciências cognitivas se não ouvirem o poder do mito como presença na experienciação cotidiana do extraordinário estarão ainda tolhidas e surdas para a fala e voz da essência do humano.


- Manuel Antônio de Castro
Ver também:
* Divino
* Sagrado
* Religião
* Deus

2

"Nesta circulação poético-ontológica, o homem é, pois, uma realização que diretamente só alcança realizações e jamais chega à realidade. Mas às vezes produz realizações privilegiadas que parecem abolir a diferença da temporalidade, pois dão acesso, embora indireto e oblíquo [eis os modos de a verdade se manifestar], aos mistérios da realidade. São os mitos. Em seu envio se faz a experiência de momentos intensos de uma temporalidade não apenas povoada de realizações, mas sobretudo integrada pela realidade" (1).


Referência:
(1) LEÃO, Emmanuel Carneiro. Filosofia grega - uma introdução. Teresópolis: Daimon Editora, 2010, p. 47.

3

O mito é a língua do sagrado. A linguagem é o sagrado se manifestando na língua do mito. Por isso, o mito é a linguagem de toda língua. Porém, devemos distinguir mito e rito. O rito é o mito concretizado nos gestos dos rituais, na medida em que o mito, nesse sentido, é a narração do sagrado. Dessa maneira, na medida em que se constitui como gestos, não podemos reduzir o rito do mito a um discurso nem a uma escritura, pois a estes falta a densidade do sentido do mito. E é mais, é o logos do sagrado enquanto o silêncio do nada criativo.


- Manuel Antônio de Castro

4

Na poesia, o que se revela memória do mito é o apelo do lógos para dizê-lo. Por isso, mais no silêncio e no vazio do que nas palavras, sons, gestos e cores, está presente o mito enquanto memória do silêncio da poesia. O rito é o lógos se fazendo palavras, música, dança e pintura do mito.


- Manuel Antônio de Castro

5

Os mitos no sentido moderno são: "[...] progresso, liberdade, igualdade e tantos outros criados pela razão moderna" (1). Ora estes mitos constituem a paideia da Bildung, que é a paideia moderna, fundamentada na razão. Dela se afasta a paideia da poíesis, fundada no ser.


- Manuel Antônio de Castro
Referência:
(1) SOARES, André Marcelo Machado. "Nietzsche e Heidegger na teologia de Paul Tillich". In: Caderno de Letras, nº 16. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, Departamento de Letras Anglo-Germânicas, p. 127.

6

"A recompensa, por se existir na ponte do tempo entre o silêncio e a fala, é avançar sempre e nunca parar" (1).
O mito é também o silêncio do rito. O rito é a fala do mito.


- Manuel Antônio de Castro
Referência:
(1) LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar II. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 28.

7

Uma reflexão da ligação do mito com a literatura e a arte está exposta na interpretação de Schuback: "Ao narrar que Ulisses [segundo Kafka] com cera nos ouvidos jamais poderia ouvir que as sereias não teriam cantado e, assim, descobrir que o mito seria ilusão, Kafka mostra que a literatura é itinerário para a verdade do mito. Literatura é a saga de Ulisses de volta para o mito" (1).
Não só Ulisses tapa os ouvidos com cera, mas as sereias não cantam: "Mais do que silêncio, elas deixam em cena o seu não-canto e assim a ausência de encantamento que constituem 'armas ainda mais terríveis do que o canto' " (2). O canto cotidiano nos enche de contentamento, mas nos pode obstruir o caminho para o não-encantamento, para o silêncio. E esta pode ser a verdade do mito, o supremo encantamento, a morte, porque depois que o silêncio fala, qualquer palavra é excessiva, cada um achou a sua plenitude. Ulisses ao ouvir o que não pode ser ouvido só se salva porque se amarra ao limite que toda fala implica. O máximo de limite da fala frente ao ilimitado de todo silêncio está na palavra cantada, onde o encantamento advém como real e como possível, como desvelado e velado, como ordinário e extraordinário, onde a ambiguidade se faz o uno de toda diversidade. A palavra cantada sendo sucessão de sons se faz sentido enquanto uno de toda realidade. Por isso, o ritmo é o real se dando, se manifestando em formas no devir contínuo da não-forma. Eis porque na pausa não há ritmo, só na fala cantada do silêncio.


- Manuel Antônio de Castro
Referências:
(1) SCHUBACK, Marcia Sá Cavalcante. "As cordas serenas de Ulisses". In: ------. Ensaios de Filosofia. Petrópolis: Vozes, 1999, p.165.
(2) Idem, p. 164.

8

Emmanuel Carneiro Leão diz que a filosofia, mais que um conhecimento ou uma ideologia ou uma visão de mundo, é uma experiência de pensamento. "Mas essa experiência de pensamento que nós não sabemos ainda o que é precisamente não é a única experiência grega, nem a única experiência grega de pensamento. Outra experiência de pensamento é o mito, a mística. Outras são os deuses e o extraordinário. Ainda há uma outra, a poesia e a arte. Uma outra experiência de pensamento é a pólis e a politéia, isto é, a organização, a ordem política da cidadania... uma outra... a primeira experiência grega de pensamento é a vida e a morte, Eros kai Thanatos" (1). Penso que por essa riqueza de experiência de pensamento é que se dá a complexidade da linguagem (mito, lógos, épos), a própria experiência de ser e não-ser.


- Manuel Antônio de Castro
Referência:
(1) LEÃO, Emmanuel Carneiro. "A filosofia grega hoje". In: Caderno de Letras, nº 18. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, Departamento de Letras Anglo-Germânicas, 2002, p. 21.

9

Apontam-se as três construções do real: filosofia, teologia, ciência. Mas elas não estão separadas, pois a ciência fragmenta a construção do homem e do real numa série de disciplinas. E cada uma de acordo com o seu objeto e método, nos propõe um entendimento do mito: antropologia, etnografia (ou etnologia), psicologia, psiquiatria, psicanálise, história. E dentro de cada disciplina ainda há as correntes. Isso numa primeira instância pulveriza o entendimento do mito, afastando-nos do seu vigor manifestativo e construtivo. Por outro lado, afirmando-se o mito um núcleo impenetrável, só ocasiona uma possibilidade de abertura para o sentido do mito no que o mito é: manifestação originária do real. Pensadas não as interpretações, mas este núcleo indecifrável, abre-se para nós a essência do mito, que é, no fundo, a essência da linguagem ou do real como totalidade cósmica. O que seja isto é o que o mito nos leva a pensar. E aqui se dá a diferença entre o mito como conhecimento e o mito como uma experiência de pensamento mítica. O mito em seu núcleo duro é sempre uma experiência de pensamento e não a formulação de um conhecimento. Quando se pensa a arte essencialmente se chega à questão do mito como experiência de pensamento, ou seja, à experiência de pensamento do sagrado. É o que Platão, no Ãon, fala sobre a inspiração dos poetas pelas Musas.


- Manuel Antônio de Castro

10

No mito deve ser considerado fundamentalmente o rito, porque o rito é o mito vigorando como tempo originário. O mito nos advém no rito, que com o tempo e no tempo se tornaram narrativas poéticas. Mas quando consideramos o rito, constatamos que ele não é um conceito, nem, evidentemente, uma representação. Por isso, o rito se constitui na essência de sua poética mítica, pois toda poética já desde sempre vigora no tempo e ser. Não temos só poética quando o mito nos dá a ritualização da própria linguagem, como no mito de Hermes. Todo rito pressupõe uma poética, pois todo rito reúne momentos de música, poesia, dança, pintura, escultura... O rito reúne as linguagens poéticas no mito como linguagem. A poética do mito se dá na consideração da tensão entre mito e rito, enquanto tempo.


- Manuel Antônio de Castro

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"O mito tem a força da verdade, a manifestação do real. O mito como palavra coloca a linguagem como a manifestação do ser. Nesse sentido, a linguagem também é mito. Ela restitui a essência ao ser. É a manifestação pela qual o real eclode em sua essência. Em grego, mýthos originou-se do verbo mytheomai, que significa: desocultar pela palavra. Palavra essa, organizada na forma de discurso sagrado. Tem o sentido de palavra divina, através do canto poético aquecido como uma fonte referente ao sentido do ser e às formas divinas do mundo. Assim, dizemos que o mito aparece como o próprio real. O real a se doar, a eclodir como Linguagem" (1).


Referência:
(1) GROETAERS, Elenice. A poética da noite em Vinicius de Moraes. São Paulo: Scortecci, 2007, pp. 58-9.

12

"Mýthos já diz o manifestar-se do real em sua essência originária, em ser o próprio extraordinário em seu vigor atuante, em sua concreticidade, pois o concreto é a vigência do vigente na pergunta que a questão nos põe. Todo mito é uma pergunta gerada pelas questões. Dialogar com e interpretar os mitos é sempre experienciar como rito a resposta à pergunta que o mito sempre e permanentemente coloca" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Permanência e atualidade da Poética". In: Revista Tempo Brasileiro, nº 171. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 11.

13

"O mito, em seu vigor imperante, está presente, como não podia deixar de ser, em todos os momentos e acontecimentos do homem, Poesia que é" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. O acontecer poético - a história literária. Rio de Janeiro: Antares, 1982, p. 39.

14

"O mito se dá como a instauração originária de mundo em vigor telúrico, como reunião de compreensão em que a plenitude do horizonte se abre à criação encerrando-se na tradição, em que cada corpo é acolhido dentro de um corpo da família, do grupo, um corpo social e sagrado que por sua vez é recolhido em sua totalidade, em cada um dos corpos de seus membros. Desta feita o mito, dispondo cada coisa em seu lugar, em que não são meras coisas, porquanto referenciadas no sentido, instaura mundo ao modo de uma corporeidade que acolhe corpos ao mesmo tempo que liberta diferentes corporeidades (1).


Referência:
(1) BRAGA, Diego. "A terceira margem do mito: hermenêutica da corporeidade". In: Revista Terceira margem. Revista do Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ. Ano XIV, 22, jan.-jun, 2010, p. 55.

15

"No longo percurso do ocidente, o mito foi uma das produções poéticas mais denegridas e desprezadas e, talvez, a que mais sofreu preconceitos. Estes vieram da filosofia, da teologia e da ciência. E, na dimensão da linguagem, da retórica funcional e instrumental. É uma carga muito pesada e destruidora. E isso impede que escutemos o mito no que ele é como mito, isto é, o que sempre perdura como mítico. O nome-verbo grego mythos, de onde se formou mito, diz o manifestar pela linguagem. Ocorre que do mesmo radical de mythos se formou outro nome-verbo essencial: mistério. O radical de ambos assinala, por isso, uma tensão de desvelamento e velamento. Nesse sentido, todo mito figura (fingit, verbo latino), enquanto língua, “imagens-questões†e “personagens-questõesâ€. Por isso é que a tais personagens-questões se denominou na modernidade personagens ficcionais, algo que em si não existe, que é inventado. Esse modo de julgar acaba escondendo o poder de verdade de tais criações. Se a personagem não existe, é ficcional, as questões que elas colocam, ao contrário, são muito reais e de maneira alguma são invenções ou ficções. Não nos devemos perguntar se tal personagem existe ou existiu historicamente, mas sim qual a questão que nela e com ela nos advém, se fez e faz presente? É como questões e como “imagens-questões†que devemos ler-e-escutar todo mito, especialmente o mito de Cura, que é um mito que nos fala do originário do homem, da sua constituição e humanização, da sua finitude" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "O mito de Cura e o ser humano". In: --------. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 221.

16

Todo mito é uma narração de perguntas, de colocação de questões. Cabe a nós nos abrirmos para a escuta dessas questões e perguntas. Dar-lhe formas narrativas é transformá-las em obras de arte.


- Manuel Antônio de Castro

17

O ser humano se desdobra em diversas faces, mas a razão tende a tudo querer abarcar. No mito isso não acontece e não há a separação dessas faces, que seriam:
Conhecer
Pensar ______________ RAZÃO
Compreender
Querer
Desejar ______________ VONTADE
Questionar
Imaginar
Sonhar________________ IMAGINAÇÃO
Inventar
Crer __________________ FÉ
Sentir
Apaixonar-se ____________ AFETIVIDADE / EMOÇÃO
Sensibilizar


A ciência dividiu essa realidade complexa em três campos:
1- Racional
2- Volitivo
3- Afetivo


E em dois métodos:
1-Dedutivo-racional
2-Indutivo-experimental - observacional - estatístico
Nenhum destes métodos dá conta do vigorar do mito, porque este é um caminhar no círculo poético de manifestação (rito) e velamento (mito). Essas divisões científicas ajudam, mas não dão conta da complexidade do que é o ser humano, porque ele se manifesta no horizonte do que é, ou seja, no pensar-se enquanto se pensa no sentido do Ser.


- Manuel Antônio de Castro.

18

Seria necessário pensar a referência/relação mito/escrita. Até onde a escrita abole o rito e deixa o mito entregue ao rito da escrita, gerando assim uma "perda" entre o rito do mito e o rito da escrita, que se refletiria na própria relação/referência linguagem/língua/narração. Sugerimos a leitura do ensaio "Teoria literária: representação e ética" (1) para contribuir com a discussão.


- Manuel Antônio de Castro


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Teoria literária: representação e ética". Disponível em [http://acd.ufrj.br/~travessiapoetic/textos.htm Travessia Poética.


Ver também:
*Bardo

19

"Provindo do mistério temporal da realidade, os mitos remetem para fontes inesgotáveis de inconsciência e consciência históricas. São criações da experiência humana com os movimentos de seu próprio princípio e os gestos de suas transformações. Pelo mito, a sobrevivência se recolhe à densidade do verbo, em que se concentra toda a autoridade da história, a força criadora da Linguagem. Para o Mito converge a diversidade essencial das experiências do homem com a realidade. Do mito corre hoje o sangue de ontem para um novo amanhã: possibilidades de vida e condições de herança para o advento de uma história sempre já vigente e sempre ainda por vir. Com o mito nos chega “o amor ainda não aprendido, a dor não conhecidaâ€, sabor deste mistério insondável da realidade na vida-morte. Sem o Mito nem a música da história ressoa nas festas nem a dança da capoeira ginga nas celebrações dos projetos" (1).


Referência:
(1) LEÃO, Emmanuel Carneiro. Filosofia grega - uma introdução. Teresópolis: Daimon Editora, 2010, p. 43.

20

"O mito inaugural é, assim, o vigor de todo vigente no espetáculo de sua vigência. Por isso, todo mito se torna um apelo que nos chega e nos atravessa com a força de um princípio de transformação" (1). Esse pricípio de tranformação é o que podemos denominar, segundo a linguagem em seu vigorar, verbal.


- Manuel Antônio de Castro


(1) LEÃO, Emmanuel Carneiro. "O esquecimento da memória". In: Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 153, abr.-jun., 2003, p. 145.

21

A palavra mythos vem do verbo grego mytheomai e diz o advir da realidade à palavra, à voz. Do mesmo radical deste verbo se formou o verbo grego myein, que diz, silenciar. Temos em português a palavra mudo, o que não fala, originada desse radical. Eclodir na palavra quer dizer advir à linguagem. Mas devemos notar que o radical desses dois verbos se dá numa dobra originária: voz e mudez provêm do mesmo fundo: o silêncio. Portanto, os mitos nada mais são do que a eclosão da realidade nas múltiplas tonalidades e visualizações da linguagem. A ligação aqui das obras poéticas com os mitos é evidente. A questão das Musas está ligada à questão da linguagem.


- Manuel Antônio de Castro

22

O mito não termina porque não começa. Está sempre principiando e na espera de desvelo dos que o ritualizem, dos que leiam, ouçam e vejam as obras de arte enquanto operar da verdade que as faz obras da verdade da realidade. O mito se consuma porque no ritualizar só se ritualiza porque está sempre principiando, isto é, principia o principiar do princípio, ou seja, é o verbo em seu vigor originário. Principiar é sempre poietizar na medida em que todo poietizar é sempre principiar e não e jamais começar, porque não é e jamais poderá ser reduzido ao tempo cronológico da metafísica funcional, estrutural e sistêmica, enfim, causal e funcional.


- Manuel Antônio de Castro

23

"Cada conjunto de mitos em todas as culturas já são modos diferentes de se defrontarem com as mesmas questões. Em nenhuma cultura mito quer ser explicação de algo. A redução dos mitos a explicações já é uma visão fundamentada na metafísica do fundamento, da causalidade. O mito manifesta a questão e estabelece a referência de ser e essência do ser humano. Todo mito é uma referência onde se manifesta a questão. Todo rito é uma narração não de uma história de vida ou vidas, mas da manifestação da questão. A questão é prévia a todo mito e rito. Porém, ela nunca é atemporal, nem a-espacial e nem a-histórica. Onde houver acontecer de tempo e espaço aí se fará presente sempre a história. Os mitos já fazem presente aquilo que vigora em toda a realidade e está para além de toda resposta. As respostas variam, isso é fundamental perceber, mas a questão dá origem a todas e nenhuma resposta a extingue" (1).


Referência bibliográfica:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "O próprio como possibilidades". In: ---. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 128.

24

Lei é destino. Tudo, absolutamente tudo, ou seja, o universo e os seres humanos, até hoje, são regido por leis, que já trazem em si o seu poder de vigência. Porém, as leis, dependendo do que regem, têm origem e instâncias bem diferentes. Daí a diferença de seu poder e modo de vigorar. E tudo, absolutamente tudo, está submetido a tais leis. Em si, todo mito é a manifestação de diferentes leis da realidade. Os mitos são a sua memória operando concretamente nos ritos. Evidentemente que se coloca então para o ser humano a questão da essência da liberdade, se tudo é regido por leis que não dependem dele. Mas não se pode confundir tal essência da liberdade com a liberdade concebida como decorrente da vontade humana. Como fica tal vontade diante do destino e suas leis? O mito que tematiza todas estas questões é, sem dúvida, o mito de Édipo.


- Manuel Antônio de Castro.

25

"O mito que se apoderou de São Paulo fez dele algo muito maior que um mero artesão.
Um mito assim, no entanto, consiste de símbolos que não foram conscientemente inventados. Aconteceram. Não foi o homem Jesus que criou o mito do homem-deus: este já existia muitos séculos antes do seu nascimento. E ele mesmo foi dominado por esta ideia simbólica que, segundo São Marcos, o elevou para muito além da obscura vida de um carpinteiro de Nazaré" (1).


Referência:
(1) JUNG, Carl G. "A alma do homem". In: JUNG, Carl G e Outros. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, Tradução Maria Lúcia Pinho, s/d, p. 89.

26

"O mito é julgado e descartado a partir do logos, reduzido à razão. E o mito sempre falou do ser humano como pertencente a um genos (de onde se forma a palavra moderna genética). Indicava uma família, um gênero (formada também de genos), uma etnia. Como família tinha algo em comum, o genos, mas cada um dentro desse genos recebia um quinhão, a sua “cota†no genos da família. O nome para esse quinhão foi e é: Moira. A tradução mais tradicional não é quinhão, mas destino" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Poético-ecologia". In: Manuel Antônio de Castro, (org.). Arte: corpo, mundo e terra. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009, p. 26.

27

"O mito não reproduz nada nem é símbolo de nada. É uma narração onde aparecem personagens-questões e imagens-questões. O importante não são os personagens, e sim as questões que o mito concretamente nos quer fazer pensar" (1).


Referência bibliográfica:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "O mito de Midas da morte ou do ser feliz". In: -------. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 189.

28

"Todo o mito (toda travessia humana) gira em torno da fala e da escuta" (1). Todo mito é uma experienciação poética da travessia humana, pois todo mito se tece e entretece em torno da alguma questão ou algumas questões. É nestas que todo ser humano realiza a sua travessia.


- Manuel Antônio de Castro.
Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Ulisses e a Escuta do Canto das Sereiasâ€. In: -----. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 157.

29

"A pretensa superação do mito pela historiografia não passou despercebida a um pensador do porte de Aristóteles. Sensível à força originária do mito, em outras palavras, à Poesia, declara (1):
"Com efeito, o historiador e o poeta não se diferenciam por dizerem as
coisas em verso ou em prosa (pois seria possível versificar as obras
de Heródoto, e não seriam menos história em verso que em prosa);
a diferença está em que um diz o que sucedeu, e o outro, o que poderia suceder.
Por isso também a poesia é mais filosófica e elevada que a história; pois
a poesia diz melhor o geral, e a história, o particular" (2).


Referências:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "O fenômeno histórico". In: ----. O acontecer poético - a história literária. Rio de Janeiro: Antares, 1982, p. 39.
(2) ARISTÓTELES. Poética. Ed. trilíngue por Valentin Garcia Yebra. Madrid: Gredos, 1974, p. 157.

30

"Mythos se formou do verbo mytheomai, que significa: desocultar pela palavra. “... mythos tem o sentido de palavra divina que se apresenta em forma de palavra humana e que por assim apresentar revela o canto como fonte de conhecimentos relativos ao sentido do ser e às formas divinas do mundo... mythos significa as palavras das ‘Musas Olímpicas, filhas de Zeus egífero’ †(1). O mito aparece como o próprio real se doando como Linguagem na palavra" (2).


Referência:
(1) TORRANO, Jaa. O sentido de Zeus - o mito do mundo e o modo mítico de ser no mundo. S. Paulo, Iluminuras, 1996, p. 26.
(2) CASTRO. Manuel Antônio de. Poética e poiesis: a questão da interpretação. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras da UFRJ. Série Conferências, v. 5, 2000, p. 9.

31

"Portanto, um mito não visa passar ou explicar fatos, ou ensinar padrões de comportamento. Não é esse o sentido do mito. O mito funciona e se apresenta como a força instauradora de uma ordem" (1).


Referência:
(1) LEÃO, Emmanuel Carneiro. "Hermenêutica do mito". In: Cadernos de Letras, 11. Faculdade de Letras da UFRJ. Depto. de Letras Anglo-Germânicas, 1995, p. 19.

32

"Para a escrita, os mitos são narrativas de fatos da natureza, estórias de divindades ou de personagens. O mito como questão foi esquecido. Sem questão o mito não é mito. Não é sem sentido que a escrita, o verbo, tanto no judaísmo, quanto no islamismo passou a ser identificado com o próprio Deus. O sagrado torna-se suporte, fundamento, escrita, escritura. Num e noutro caso fala-se sempre das sagradas escrituras. Onde há muito mais suporte escrito do que sagrado, pois eles se dispersam nas versões das traduções e das interpretações. Toda tradução já é uma interpretação. Esses fatos têm também um lugar importante na questão essencial do próprio e dos atributos. A escrita, ao representar, entifica" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "O próprio como possibilidades". In:------. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 133.

33

"Para o mito ao sagrado correspondia toda a realidade. Esta não era vista como a criação dele, porque não havia a ideia de criação e criador. Esta ideia tornou-se dominante posteriormente. O sagrado como tal, em meio aos múltiplos mitos, jamais foi identificado com alguma figura ou causa. Era uma força que se fazia presente e operava em toda a realidade" (1).


Referência:
(1) www.travessiapoetica.blogspot.com>2010/10/as-musas-e-essencia-da-criacao-html

34

"O mytho é o nada que é tudo†(1).


Referência:
(1) PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Aguilar, 1965, p. 72.

35

"O mito tem sido muito silenciado na cultura ocidental. Com a expansão planetária desta, os mitos de outros povos acabaram sendo apreendidos e lidos a partir desse silenciamento. Este consiste em um jogo muito sutil e violento: não deixá-lo se manifestar e falar o tempo todo por ele e sobre ele. Por tal violência deu-se a fuga dos deuses e a perda do sagrado" (1).


Referência:
(1) : CASTRO, Manuel Antônio de. “O mito de Midas da morte ou do ser felizâ€. In: ------. ‘’Arte: o humano e o destino’’. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 187.

36

"Porém, se os mitos foram expulsos de nosso horizonte, eles continuam presentes e fortes, porque eles não são invenções ficcionais nem irreais. Também não são explicações causais para os fenômenos naturais ou psíquicos, como uma mitologia de base científica nos quer fazer acreditar. Nossas mentes e línguas, poluídas por saberes metafísicos, retóricos e científicos, sentem uma real dificuldade de se abrir para o saber dos mitos. Eles são a dimensão mais profunda do que em nós é e teima em ser. Foram-se os mitos, mas continua com sua força onipresente: o mítico. Ele se faz presente e irrompe principalmente nas obras poéticas. O vigorar das obras artísticas se manifestando é o mítico irrompendo em nossas vidas. O mítico é o vigorar das questões" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Ulisses e a Escuta do Canto das Sereiasâ€. In: -----. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo

Brasileiro, 2011, p. 152.

37

"Ora, a palavra mythos forma-se do verbo grego mytheomai, que significa: abrir, manifestar pela palavra. Por isso, toda poíēsis é radicalmente mítica. A questão fundamental do mito e da poíēsis, da harmonia Cósmica e, nela, do humano do ser humano, é o destino enquanto Ser e Não-ser" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Ulisses e a Escuta do Canto das Sereiasâ€. In: -----. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 171.

38

"Como deixar o mito falar? É necessário pôr tudo que conhecemos em suspenso e ter a coragem de ouvir o mito. Deixemos advir o silêncio e escutemos. Façamos uma leitura de escuta do que esse mito diz. Minha escuta, a seguir transcrita, não necessariamente será, e é bom que não seja, a do leitor. Vamos ter algo em comum, mas também algo diferente. Os dois aspectos são importantes porque só então pode haver diálogo, pois só há diálogo onde convivem as diferenças na identidade do acontecer da linguagem, fonte de todo sentido" (1).


Referência bibliográfica:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "O mito de Midas da morte ou do ser feliz". In: -------. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 188.

39

"O mito não explica nada. Nunca explica nada. Na simplicidade e dinâmica das imagens nos lança no cerne das questões, pedindo, exigindo de nós um salto mortal para o abismo sem fundamento e no abismo em que já desde sempre nos movemos" (1).


Referência bibliográfica:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "O mito de Midas da morte ou do ser feliz". In: -------. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 196.

40

"O mito, origem da poiesis, só trabalha com imagens, não retóricas, porém, questões: são as imagens-questões. Mnemósine é a memória, a mãe de todas as Musas. Verdade é a deusa Aletheia. Sabedoria é Métis. E assim por diante. São imagens-questões. Quando entendermos a linguagem poética dos mitos como imagens-questões, deixaremos que eles voltem a ter o seu vigor originário. As imagens-questões nos mitos concretizam o real se realizando em realizações incessantes" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. “Heidegger e as questões da arteâ€. In: Manuel Antônio de Castro, (org.). Arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p. 19.

41

"Os mitos, como todas as obras poéticas, propõem imagens-questões ou questões-figuras. Édipo é uma imagem-questão. Que questões Édipo figura? Como a questão é sempre ambígua, pois vige a partir do “entreâ€, Édipo é, talvez, a imagem-questão mais ambígua e radical que o mito-arte criou, porque ele simplesmente é, como questão, o mito do homem, numa expressão ao mesmo tempo subjetiva e objetiva" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. “Heidegger e as questões da arteâ€. In: Manuel Antônio de Castro, (org.). Arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p. 22.

42

"... passa a estudar metodicamente a obra poética de Hölderlin. Nos passos e passagens da obra deste poeta, que ele considera como o poeta e pensador, incorpora ao pensamento e repensa o “lugar†(mundo) do mito em seu vigor inaugural, na medida em que os mitos são imagens-questões" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. “Heidegger e as questões da arteâ€. In: Manuel Antônio de Castro, (org.). Arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p. 32.

43

"Que quer dizer a palavra mito? Mythos se origina do verbo mytheomai, que significa simplesmente o eclodir, o se abrir como palavra, linguagem. O mito não é, por isso, um discurso narrativo sobre algo. O mito é a narração, o narrado e a alétheia (verdade) da narração e do narrado. Em grego, portanto, mythos é aletheia. São esses “os princípios†de tudo. Só que no mythos não há princípio" (1).


Referência:
(1) "Mythos e genos". In: ---. www.travessiapoetica.blogspot.com

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"Temos de acolher a palavra sagrada do mito que se faz estória que, incorporada, já somos nós mesmos, viajantes, intérpretes, em travessia" (1).
Referência:
(1) CARVALHO, Taís Salbé. "João Guimarães Rosa e a criação poética". In: ---. Viajar e existir em Primeiras Estórias, de João Guimarães Rosa. São Carlos - SP: Editores Pedro & João, 2022, p. 96.

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"Todo mito é a oferta das questões em imagens-questões e figuras. Os mitos têm muitas versões porque o real se manisfesta de muitas maneiras. Até a Física chegou à conclusão de que só pode ser Física da complexidade. Claro, a physis, ou natureza, é e será sempre questão. A Physis é mais do que a Física" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Poético-ecologia". In: Arte: corpo, mundo e terra. CASTRO, Manuel Antônio de (org.). Rio de Janeiro: 7Letras, 2009, p. 19.
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