Dobra

De Dicionrio de Potica e Pensamento

1

Dobra é o nomear do desdobramento da arkhé em télos. É um desdobrar-se para além e aquém de sistemas, relações e causas, porque toda dobra é sem porquê. Na dobra vige o mesmo pelo qual a arkhé e o télos constituem identidade e diferença. Mesmo é a arkhé vigorando como desdobramento da dobra no télos. O mesmo enquanto dobra é o ser do sendo. Sendo é o presencializar-se do que sem cessar se presenteia em sua presença, em grego morphe. A plenitude da presença, a arche enquanto telos, não é a afirmação do ente, mas do sendo em sua plenitude enquanto memória destinal do mesmo, o retorno à sua fonte de origem, o nada, mas agora como dobra desdobrada, na sua plenitude, onde nada e tudo são um e o mesmo. A dobra não pára de se desdobrar, assim como diz Heráclito na sentença 84: "Transformando-se, repousa". Por isso, o mesmo é a dobra enquanto energia originária.


- Manuel Antônio de Castro

2

A dobra se dá no vigorar do eu e do tu enquanto desdobramento e doação do ser, desdobramento de pensar e ser (ver sentença III de Parmênides). No vigorar da dobra é que acontece a aletheia, a verdade. Por isso ela será sempre um entre, um diálogo de ser e pensar, no exercício concreto do krinein, do criticar originário. Krinein diz então o vigorar do sentido do ser no doar-se e destinar-se enquanto verdade. Nesse sentido poético, a crítica não é um exercício epistemológico-racional, mas ontológico. No conhecer epistemológico-racional não acontece ser porque só temos a sua representação causal e substantiva, isto é, dual. O modelo pressupõe o dual enquanto duplo, ao passo que a dobra se funda na matriz.


- Manuel Antônio de Castro

3

Podemos compreender o tu pensando o eu, porque o tu é o outro do eu. Um outro que pode ser ele mesmo desdobrando-se no que ainda não é, mas pode vir a ser, pois tudo é e não é. Para então compreender o tu, é necessário que saibamos que antes de o eu se descobrir como eu é necessário que saia dele e se projete no outro. Somente assim o eu retorna a si e toma consciência de que é um eu. Ou seja, para chegarmos a saber quem eu sou, temos que já ser também o não-eu, ou seja, o tu. E o eu chega a ser neste desdobramento de eu e tu. Do mesmo modo, cada um chega a saber se é do gênero masculino ou feminino na medida em que para chegar a se saber ou conhecer já tem de ser os dois gêneros. Jung fala em animus e anima. Os dois gêneros pressupõem, por isso mesmo, o sou sendo. Todo sendo é sendo de uma dobra: o eu e o tu. Percebamos isso bem: Num diálogo, eu me dirijo ao tu e ele me escuta e sabe que está me escutando. Porém, quando o tu responde, eu escuto, não como eu, mas como tu. Portanto, para podermos dialogar temos de ser a dobra de eu e tu, caso contrário não dialogaríamos, não nos reconheceríamos, pois aí depende só da posição de quem fala e de quem escuta. Igualmente podemos falar conosco mesmo, ou seja, eu posso me escutar, apropriando-me do próprio que eu sou. Ontologicamente há a unidade. Só nesta pode vigorar a identidade e a diferença da unidade, uma vez que para haver e vigorar unidade é necessária a afirmação tanto da identidade quanto da diferença. É neste mesmo horizonte ontológico que devemos compreender em nós a vigência de masculino e feminino.


- Manuel Antônio de Castro

4

Diz Heráclito na sentença 84: “Transformando-se, repousa” (1).
O princípio da transformação é o repouso e o do repouso é a transformação. Isto é uma dobra. Ou na sentença 103: “Princípio e fim se reúnem na circunferência do círculo” (Idem). Este pensamento dá continuidade ao anterior, acrescentando a questão do fim e do caminho. Desse modo, o caminho da dobra acontece, dá-se no círculo.


- Manuel Antônio de Castro
Referência:
(1) (Heráclito. In: Pensadores originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Tradução: Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublewski. Petrópolis/RJ: Vozes, 1991).

5

"E sempre o que nos orienta é a escuta do ético do poético. Isso é o erótico. Este remete, claro, aqui para Eros e sua origem numa dobra, aquela que rege toda condição humana: o humano e o divino. Para compreender toda a força e presença do mito de Eros, temos de abandonar a leitura moderna e racional do que seja mito (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Diálogos trans- e a questão do humano". In: http://travessiapoetica.blogspot.com.

6

"Aqui, retomo a questão da lógica e da palavra que lhe dá origem: o logos. Há uma outra palavra grega que faz uma dobra com logos e que, normalmente, não é pensada nem trazida ao pensamento: nous. Formada do verbo noein, significa: pensar; saber por ter visto. Daí a tradução antiga e sempre atual de nous ser intellectus: intelecto, pensamento, inteligência e não meramente razão" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Diálogos trans- e a questão do humano". In: http://travessiapoetica.blogspot.com.

7

"Pensar diz, portanto, não definir nem conceituar, mas o abrir-se para o aprender a pensar o que é digno de ser pensado. Isso é a travessia: dobra desdobrando-se, sempre inauguralmente" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "A gota d’água e o mar". In: ---. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 246.

8

"Na vida, entretanto, não basta sentir, é necessário ser o que se sente. Ao contrário, a poética é um enigma que se dá em uma dobra. O seu desdobrar-se é mais que estético, algo somente preso às sensações ou percepções, é poético. Só o poético vigora no e a partir da essência do agir. Eis aí a diferença radical entre estética e poética. A essência do agir vigora a partir do sentido do ser e acontece em nós quando nos abrimos para o operar do pensar" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Liberdade, vontade e uso de drogas”. In: ---. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 269.

9

"E agora é necessária uma primeira distinção, sempre a partir da essência do agir, do questionar. Ontologicamente, podemos conceber todo sendo como a dobra: a) do que é; b) do como é. É sempre no agir do como sou que, desdobrando-me dialeticamente, chego a ser o que sou" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "O ser, o agir e o humano". In: ---. Leitura: questões. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2015, p. 38.

10

"O operar das obras de arte, como dobra de phýsis e humano, radica sempre além e aquém de todo humanismo" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Phýsis e humano: a arte”. In: ---. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 264.

11

O ser humano e a realidade movem-se numa dobra misteriosa: mudam e permanecem. Rosa no maravilhoso conto “O espelho” afirma:
Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo” (1).
Embora muitas vezes nos pareça que está tudo parado, que há somente repetições, o autor vai justamente afirmar o contrário: há sempre algo acontecendo como milagre. Que milagre é esse? O milagre do mudar e permanecer. Estes constituem uma dobra e não e jamais uma dicotomia.


- Manuel Antônio de Castro.
(1) ROSA, João Guimarães. "O espelho". In:---. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1967, p. 71.

12

"O Tao é um, mas no momento em que ele se torna manifesto, precisa se tornar dois. A manifestação precisa ser dual: ela não pode ser uma só, precisa se dividir em duas. Ela precisa tornar-se matéria e consciência, precisa tornar-se homem e mulher, dia e noite, vida e morte... Você encontrará esses dois princípios em todos os lugares. O todo da vida consiste nesses dois princípios, e por trás deles está o oculto o Uno. Se você insistir em permanecer às voltas com essas dualidades, nos polos opostos, permanecerá no mundo. Se você for inteligente, se for um pouco mais alerta e começar a olhar mais fundo, a olhar para a profundidade das coisas, ficará surpreso: os opostos não são realmente opostos, mas complementares. E por trás de ambos há uma única energia: o Tao" (1). O autor usa a palavra dual, penso que melhor seria usar a palavra dobra, onde se faz presente a diferença e a identidade. A dualidade criada entre oposto e complementar ignora a presença e energia da dobra, presente em tudo.


- Manuel Antônio de Castro.
Referência:
(1) OSHO. "Os princípios do tao". In: ---. Tao, trad. Leonardo Freire. São Paulo: Cultrix, 2014, 10.

13

"Só na dobra vigorante em todo ato, o sentido do ser, como sentido da linguagem, torna-se tanto mais poético quanto mais ético. Sendo o poético-ético o vigorar do ser ao dar-se como linguagem" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Liberdade, vontade e uso de drogas". In: ----. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 276.

14

A dobra se desdobra nos transcendentais, fundando-se na unidade de ser e conhecer. Só há dobra porque há unidade, só há unidade porque há dobra de ser e conhecer. Identidade é o mistério enquanto o nada criativo.


- Manuel Antônio de Castro.

15

"Diante do perigo mortal, Ulisses, no relato aos seus companheiros, começa acentuando dois aspectos interligados e fundamentais: o saber, o tomar consciência, e o destino que implica esse saber. De novo, não é um saber como qualquer outro saber, é um saber que abre para o que o destino é. No destino dá-se a dobra de saber e ser. O vigorar desta dobra é a essência do agir. Nesta acontece o destino que nos foi destinado. É por isso que não é a vontade por meio da razão que age, mas o querer poder do destino. E aqui o destino é o próprio mito enquanto saber. Experienciar o destino é experienciar o mito, e experienciar o mito é experienciar o saber. Saber é tomar consciência do destino e realizá-lo em nossas escolhas" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Ulisses e a Escuta do Canto das Sereias”. In: -----. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 172.

16

"Por que as palavras doces, divinas e encantadoras das Sereias podem levar à morte? Não há aí um paradoxo? Certamente. E esse é o vigor poético da palavra cantada: a sua ambiguidade. Mas todo viver não é ambíguo? Não estamos, a cada momento que vivemos, ao mesmo tempo morrendo? Viver não é o desdobrar da dobra de vida e morte? O perigo e a possibilidade da morte é uma experiência de vida. A ciência nos acena com a vida biológica e lá no seu final a morte. É um engano, é um embuste. Existencialmente morremos desde que nascemos. E isso é bom, porque só morrendo é que podemos saber que vivemos, não a vida biológica, mas o que somos e não-somos. Essa é a nossa travessia poética, o nosso destino" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Ulisses e a Escuta do Canto das Sereias”. In: -----. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 175.

17

"As diferenças não podem cair na dicotomia metafísica, invertendo o sistema pela afirmação de um outro, mas afirmando, sim, a identidade, porém, como identidade das diferenças e diferenças da identidade (alteridade e ipseidade). A diferença, porque é diferença, vigora no âmbito sempre do não-saber. Ousar saber e ousar não-saber significa saber e não-saber, ser e não-ser, significa assumir a liminaridade de finito e infinito, a dobra. Nessa tensão liminar nos realizamos como diferenças. É a medida da Escuta de Ulisses que nos advém como palavra cantada, como Escuta do mito das Sereias. Por isso precisamos ter sempre presente o pensar poético de Heráclito (1):
Se não se espera, não se encontra o inesperado, sendo sem caminho de encontro nem vias de acesso (2). (1991, 63).


Referências:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Ulisses e a Escuta do Canto das Sereias”. In: -----. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 183.
(2) HERÁCLITO. Ina: OS PENSADORES ORIGINÁRIOS. Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Trad. Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublesvski. Petrópolis: Vozes, 1991, 63.

18

"O duplo coloca a vida como começo e a morte como fim. A dobra diz: vida e morte são circulares e tensionais. Não há oposição entre tempo cronológico e tempo poético-circular. As narrativas poéticas se movem nessa dobra. Um bom exemplo é o conto de Guimarães Rosa, no livro Primeira estórias: “Sequência” " (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Tempo, o poético-circular e a cronologia". Ensaio não publicado.
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