Palavra cantada

De Dicionrio de Potica e Pensamento

Tabela de conteúdo

1

"Ulisses se dimensiona pelo destino, porque ao mesmo tempo em que pode afirmar o seu querer, deve igualmente negá-lo, pois tem que ficar amarrado, preso, limitado. É nessa duplicidade ambígua de ações que Ulisses pode realizar a Escuta. E ele obedece à orientação de Circe.
Obedecer não é cumprir ordens. É ob-audire, ser todo escuta de vigor desta liberdade (1).
Só por obedecer é que Ulisses se pode libertar para a Escuta. Aparentemente, o importante não são as Sereias, mas a palavra cantada. Na realidade não há separação, as Sereias são a própria palavra cantada. O perigo está na Escuta. É nela que o destino se destina" (2).


Referência:
(1) LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar I. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 239.
(2) CASTRO, Manuel Antônio de. "Ulisses e a Escuta do Canto das Sereias”. In: -----. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 173.

2

"Diz Ulisses: “Somente eu posso escutar” (verso 160). Por que somente ele pode escutar? Esta escolha o mito narra, mas não explica. E nem precisa. Basta atentar para as ações de Ulisses. E uma coisa fica clara: Não é uma decisão pessoal. O apelo vem de uma força que radica no que há de mais profundo e interior a nós, e que pede uma abertura: a Escuta. Há uma disposição constitutiva do ser humano para ser, mas temos que realizar essa disponibilidade. Certamente cada um de nós deve esperar o seu dia de ser Ulisses e escutar a palavra cantada que encanta, brotando de nosso âmago. Em algum momento, sempre diferente para cada um de nós, haverá o apelo para que nos disponhamos para a Escuta da fala da palavra cantada. Porque, embora os mitos vivam hoje ausentes, ainda assim temos sempre vivo o mítico, que é um apelo para a Escuta do canto das Sereias" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Ulisses e a Escuta do Canto das Sereias”. In: -----. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 174.

3

"Por que as palavras doces, divinas e encantadoras das Sereias podem levar à morte? Não há aí um paradoxo? Certamente. E esse é o vigor poético da palavra cantada: a sua ambiguidade. Mas todo viver não é ambíguo? Não estamos, a cada momento que vivemos, ao mesmo tempo morrendo? Viver não é o desdobrar da dobra de vida e morte? O perigo e a possibilidade da morte é uma experiência de vida. A ciência nos acena com a vida biológica e lá no seu final a morte. É um engano, é um embuste. Existencialmente morremos desde que nascemos. E isso é bom, porque só morrendo é que podemos saber que vivemos, não a vida biológica, mas o que somos e não-somos. Essa é a nossa travessia poética, o nosso destino" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Ulisses e a Escuta do Canto das Sereias”. In: -----. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 175.

4

"As Sereias não são mulheres que sabem e cantam o saber. Elas são simplesmente o saber e o canto. No saber das Sereias se dá o saber como sabor: divino e encantador: “Bem mais instruído prossegue depois de se haver deleitado”. Na palavra cantada não se dá apenas a experiência estética, mas enquanto poética, ela é também ética, ou seja, ontológica. O canto é o próprio e mais profundo saber se manifestando enquanto o que é. As Sereias, propriamente, não cantam algo, são a própria palavra cantada, são a essência da música em seu sentido instaurador de realidade" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Ulisses e a Escuta do Canto das Sereias”. In: -----. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 177.

5

"O mito é o convite não para a representação de algo, mas para a Escuta da própria e verdadeira manifestação da realidade, que é a essência da palavra cantada acontecendo. Esta manifestação se na palavra cantada como saber e sabor, por isso inefável. Quando as Sereias cantam: “Todas as coisas sabemos”, elas são a própria memória, em grego, mnemósine. No mito das Sereias, Mnēmosýnē se como palavra cantada. Esta não é portadora deste ou daquele saber, é o próprio saber, todo saber" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Ulisses e a Escuta do Canto das Sereias”. In: -----. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 177.

6

"Poética e miticamente a Palavra Cantada nos aparece como Memória, Musas e Sereias. Estas, por tudo saberem, têm como reverso a morte. Há a definição da morte “biológica”, mas nós não sabemos o que é a morte do que somos. E por quê? Quem experimentou a morte não voltou para dizer. A morte é o umbral do não-saber, do saber infinito. Nosso saber é finito" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Ulisses e a Escuta do Canto das Sereias”. In: -----. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 177.

7

"Toda presença, operar da palavra cantada, enquanto ritmo, se faz presente como vigorar poético manifestativo, como doação (presente). Por isso, toda forma, enquanto poética, é musical. A palavra cantada não é algo que acontece ou não em nossa vida, somos radicalmente musicais" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Ulisses e a Escuta do Canto das Sereias”. In: -----. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 180.
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