Dança

De Dicionrio de Potica e Pensamento

1

"Naturalmente, existem situações que deixam você sem palavras. Você tem apenas uma noção das coisas. Também as palavras não ajudam muito... elas apenas evocam as coisas. É aí que entra a dança" (1).


Referência:
(1) Palavras de Pina Bausch, no filme Pina, de Wim Wenders. 2011.

2

O que há de essencial na dança é que ela incorpora a música a partir do que é comum a ambas, o silêncio, e a faz desabrochar nas possibilidades de advir ao ver, onde comparecem o figurar e o vazio, enquanto poíesis, o vigor do poético. Mas é necessária uma reflexão especial porque, embora a dança se funde no ver/imagem, também não incorpora a imagem-conceito-representação. Se a música faz presente a escuta, a dança faz presente a figuração-imagem, mas sem representação. A dança se dá na tensão vazio/gesto. E aí é necessário pensar a poíesis - verbo noutras dimensões e medidas. Todo andar, se mover, lugar e mundo já são dança. Ela vai estar articulada à dzoé, à vida como psyché - respiração -, a Hermes como verbo - poíesis - ou seja, ao vigor poético.


- Manuel Antônio de Castro

3

O movimento é a grande questão para os filósofos gregos e pensadores originários. A solução de Galileu para o movimento foi achada na redução do movimento à equação matemática. Matematizar o movimento é a solução moderna e científica. A metafísica já o fizera através da substituição da questão pelo conceito. Por isso, há uma profunda simbiose entre técnica e matemática. Daí o movimento preciso. Nessa precisão técnica muitas vezes se resolve e conceitua o gesto e a dança como gestos. Contudo, essencialmente, o movimento só é dança quando ele se manifesta como sentido e essência do agir. É que na e pela ação poética o ser humano chega a ser o que é. Ora, os gregos, ao movimento como essência e sentido do agir, chamavam poíesis. Esta poíesis é sempre essencialmente um agir da phýsis/nascividade/natureza. Por isso, Heidegger diz a propósito de phýsis como surgir: "[...] podemos ainda pensar o surgir como quando o homem, concentrando o olhar, surge para si mesmo, como no discurso o mundo surge para o homem e com ele se reúne a fim de que o próprio homem se revele, como o ânimo se desdobra nos gestos, como sua essência persegue o desvelamento num jogo, como sua essência se manifesta na simples existência" (1).
O ânimo se desdobrando nos gestos é a essência da dança. Fique, porém, claro que a palavra ânimo, de anima, alma, traduz o termo grego psykhé, que quer dizer o movimento vital de inspirar e expirar no respirar: o livre viver.


- Manuel Antônio de Castro
Referência:
(1) HEIDEGGER, Martin. Heráclito. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998, p. 101.

4

"Com a dança que em voltas tece o tempo e toca a terra com o peso do ritmo, na música, o corpo de filha-de-santo e de orixá é um corpo. A dança já não é a atividade de um corpo possuído por um ente divino, com tais e quais características, própria de tal ou qual cultura. A dança é plenamente o orixá. É plenamente a filha-de-santo. A dança é, no lugar de encontro do corpo, a filha-de-santo e o orixá. Visto que a dança traz o sentido do encontro do corpo de filha-de-santo e orixá, ela não é outra coisa senão o acontecimento do sentido de reunião desta corporeidade. Assim, não é o corpo que dança. O corpo é a dança que se dança. A dança é o peso da música na terra, sua densidade e concretude. Instaurando o lugar da música, a dança é um corpo com o atabaque com o qual ela dança. O atabaque, fazendo vibrar no ar que se respira, no tempo que se abre generoso ao acontecimento da dança, é um com esta dança que faz o seu ritmo ser plenamente experienciado como música. O atabaque, tecendo o tempo em ritmo concede à dança o lugar de seu acontecimento" (1).


Referência:
(1) BRAGA, Diego. "A terceira margem do mito: hermenêutica da corporeidade". In: Revista Terceira margem. Revista do Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ. Ano XIV, 22, jan.-jun, 2010, p. 57.

5

A profunda ligação e integração de corpo e dança não é simplesmente uma questão de posicionamento artístico ou estético, mas, sim, poético-onto-fenomenológico. Diz Capra, citando Varela e Coutinho: "[...] a dança mútua entre sistema imunológico e corpo [...] permite que o corpo tenha uma identidade mutável e plástica ao longo de toda a sua vida e seus múltiplos encontros" (1).


- Manuel Antônio de Castro


Referência:
(1) CAPRA, Fritjof. A teia da vida. São Paulo: Cultrix, 2004, p. 220.

6

"Como a dança faz o nada? Aqui me lembro de uma passagem do conto “O espelho” de Guimarães Rosa, onde diz: “Quando nada acontece há um milagre que não estamos vendo” (Rosa: 1967, 71). Para mim, a dança é o nada acontecendo. Portanto, a dança é um milagre" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. “Aprender com a dança: fluxos e diálogos poéticos”. In: TAVARES, Renata (org.). O que me move, de Pina Bausch – e outros textos sobre dança-teatro. São Paulo: LibersArs, 2017, p. 81.

7

"A dança jamais pode se por a serviço de qualquer sistema, caso contrário perderá sua identidade, seu próprio. E qual é o próprio da dança, a sua identidade? Esta identidade não pode ser diferente da identidade de todo ser humano. O próprio é a medida de cada um. À realização dessa medida corresponde a história de cada um, que é sempre singular e irrepetível. Ou ao menos deveria ser. A medida é o destino" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. “Aprender com a dança: fluxos e diálogos poéticos”. In: TAVARES, Renata (org.). O que me move, de Pina Bausch – e outros textos sobre dança-teatro. São Paulo: LibersArs, 2017, p. 82.

8

"A realidade é o labirinto que exige de nós uma caminhada de sentido, um motivo que nos mova em nossa existência. É para esse sentido que a dança nos conduz, se a deixarmos operar, se tivermos a coragem de nos entregarmos a ela em sua vigência. Na dança poética somos tomados pelo que somos, pois ser é sempre uma tarefa poética, onde quem vigora é o princípio: o não cessar de estar sendo" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. “Aprender com a dança: fluxos e diálogos poéticos”. In: TAVARES, Renata (org.). O que me move, de Pina Bausch – e outros textos sobre dança-teatro. São Paulo: LibersArs, 2017, p. 83.

9

"A essência do ser humano é a sua referência ao ser. Daí não poder ficar determinada pelo instrumental ditado seja lá por qual sistema for. Nesse sentido de disciplina e sistema, a dança é o não-conhecimento porque é o não-sistema, porque é o livre dar-se e manifestar-se do que cada um já desde sempre é. Dança é sempre travessia, história, obra. E obra é o que opera. Opera o quê? A educação do humano pelo deixar vigorar o seu princípio constitutivo. Aqui está a questão. O princípio constitutivo do humano é o estético ou o poético? Dança não pode ficar reduzida a vivências estético-sentimentais, a um espetáculo para os olhos ou prazeres dos sentidos" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. “Aprender com a dança: fluxos e diálogos poéticos”. In: TAVARES, Renata (org.). O que me move, de Pina Bausch – e outros textos sobre dança-teatro. São Paulo: LibersArs, 2017, p. 82.


10

"O vidente é aquele que já tem visto a totalidade das coisas que se apresenta na presença: em latim vidit; em alemão er steht in Wissen (ele está a par). Ter visto é a ausência do saber. No ter visto já há sempre outra coisa em jogo que a simples realização de um processo ótico. No ter visto a relação com aquilo que se apresenta já retrocedeu para trás de toda a espécie de percepção sensível e não-sensível. A partir daí, o ter visto está relacionado com a presença que se clarifica.
O ver não se determina a partir do olho, mas a partir da clareira do ser. A in-sistência nela constitui a articulação de todos os sentidos humanos. A essência do ver enquanto ter visto é o saber. Este contém a visão. Ele permanece na lembrança da presença. O saber é a lembrança do ser. É por isso que Mnemosýne é a mãe das musas. Saber não é a ciência no sentido moderno. Saber é salvaguarda pensante da guarda do ser" (1).
Na medida em que todo ver pressupõe o já ter visto de alguma maneira é que dá origem ao vidente e à evidência. Esta não precisa de mediação, por ela a realidade se mostra no que ela é e em-si. Por isso, dizemos frequentemente: isso é evidente, ou seja, não precisa de uma explicação, de uma mediação. Em sua essência, todo ser humano é um vidente, embora poucos consigam quebrar o hábito do ver banal e cotidiano. Todo artista, especialmente o poeta e pintor, se deixa tomar em seu ver e dizer pela evidência. Na dança, o meio de manifestar o evidente é o gesto. Todo gesto na dança manifesta a realidade acontecendo, dando-se a ver.


Referência:
(1) HEIDEGGER, Martin. "A sentença de Anaximandro". In: Os pré-socráticos. Coleção Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 34.
- Manuel Antônio de Castro


11

"O mundo se entretecendo é sempre uma manhã inaugural. A manhã se tecendo é o mundo. No tecê-lo entram todos: cada um na dança de seu corpo e em seu canto tece o fio e os fios dos cantos de outros se unem e se entrecruzam num entretecer dos raios do sol numa teia viva (Sol e Terra, que se retraem), sonora, luminosa, colorida: é a manhã, dança da Terra, doação do Sol, mundo e poiesis do entre-seres. No entre-ser entretece-se o canto" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Interdisciplinaridade poética: o entre". Revista Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro: Interdisciplinaridade: dimensões poéticas, 164, jan.-mar., 2006, p. 35.


12

"A dança é uma leitura do e com o corpo. No andar, o corpo é um organismo de locomoção para chegar a algum lugar. No dançar, ele se torna o corpo que é em si mesmo, sem algo que lhe seja externo e sem a pergunta: para que serve? Aliás, pensando poeticamente, é impossível separar intelecto, corpo e eroticidade" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "O ser, o agir e o humano". In: ---------. Leitura: questões. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2015, p. 202.

13

O Ânimo se desdobrando nos gestos é a essência da Dança. Fique, porém, claro que a palavra ânimo de anima, alma, traduz o termo grego psyché, que quer dizer o movimento vital de inspirar e expirar: o livre viver. Dança são os gestos do movimento que nos libertam para o livre viver pela manifestação do que essencialmente somos. O gesto da dança é a procura da densidade do sentido do agir em sua manifestação. Dança é a sintaxe da physis se manifestando no ser humano em seu sentido poético. O gesto, na figuração do movimento, é uma doação do vazio e do silêncio que colhe o seu sentido na busca da plenitude do agir: o repouso. O gesto é o sentido do corpo na tensão harmônica de limite e não-limite, de atração para a Terra e experienciação da liberdade no aberto da vida. A dança não é o corpo em movimento. Pelo contrário, é o corpo eclodindo na densidade do que é enquanto procura de realização plena no não-movimento do repouso. Repouso diz aí sentido pleno e não falta de ação.


- Manuel Antônio de Castro.

19

"Poesia é conceder silêncio à palavra (que é corpo) e ceder palavra-corpo ao silêncio, enquanto dança propriamente é a concessão de corpo (que é palavra) ao nada e imediatamente, cessão de nada à corporeidade. Dança é, portanto, conceber o corpo poeticamente. Poetizar é consumar a palavra como dança " (1).


Referência:
FAGUNDES, Igor. Macumbança - Poesia - Música - Dança. São Paulo / Guaratinguetá: Editora Penalux, 2020, p. 110.

20

"O princípio constitutivo do humano é o estético ou o poético? Dança não pode ficar reduzida a vivências estético-sentimentais, a um espetáculo para os olhos. Ver dança é ver-se enquanto sendo dança. Para as vivências dos sentidos, entre outros meios, uma confeitaria cumpre bem essa finalidade. Dança não é meio. É. E é na medida de seu poder de diálogo poético" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. Aprender com a dança. Ensaio não publicado.

21

eu me tornei confiante
quando decidi que me divertir
era muito mais importante
que meu medo de passar vergonha


- dançando em público (1)


Referência:
(1) KAUR, rupi. meu corpo / minha casa. Trad. Ana Guadalupe. São Paulo: Editora Planeta, 2020, p. 128.

22

"A integração de todos os sentidos como movimento do ser em seu sentido se chama dança e isso é o corpo" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. A arte e a arte culinária:eros, ensaio não publicado, 17-10-2005.
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