Ver

De Dicionrio de Potica e Pensamento

1

Só aparentemente vemos o que vemos no horizonte como alcance de nossa visão. Boa visão não é aquela que vê tudo que é visível. Boa visão é a que vê o não-visível no visível. Nem vemos o olho que vê, embora nele, que não se vê, se realize toda possibilidade de visão. Na realidade, vemos o que se dá a ver daquilo que dando-se a ver se retrai e vela, enquanto não-visível, como possibilidade de todo visível. Só por podermos ver a partir da possibilidade do não-ver é que efetivamente podemos chegar a ver o que vemos. Por que vemos pouco, muito pouco? Porque não é necessário ver muito, só o essencial. E o essencial é o visível do não-visível, mas sem o qual o visível não pode se tornar visível.


- Manuel Antônio de Castro

2

"O vidente é aquele que já tem visto a totalidade das coisas que se apresenta na presença: em latim vidit; em alemão er steht in Wissen (ele está a par). Ter visto é a ausência do saber. No ter visto já há sempre outra coisa em jogo que a simples realização de um processo ótico. No ter visto a relação com aquilo que se apresenta já retrocedeu para trás de toda a espécie de percepção sensível e não-sensível. A partir daí, o ter visto está relacionado com a presença que se clarifica.
O ver não se determina a partir do olho, mas a partir da clareira do ser. A in-sistência nela constitui a articulação de todos os sentidos humanos. A essência do ver enquanto ter visto é o saber. Este contém a visão. Ele permanece na lembrança da presença. O saber é a lembrança do ser. É por isso que Mnemosýne é a mãe das musas. Saber não é a ciência no sentido moderno. Saber é salvaguarda pensante da guarda do ser" (1).
Na medida em que todo ver pressupõe o já ter visto de alguma maneira é que dá origem ao vidente e à evidência. Esta não precisa de mediação, por ela a realidade se mostra no que ela é e em-si. Por isso, dizemos frequentemente: isso é evidente, ou seja, não precisa de uma explicação, de uma mediação. Em sua essência, todo ser humano é um vidente, embora poucos consigam quebrar o hábito do ver banal e cotidiano. Todo artista, especialmente o poeta e pintor, se deixa tomar em seu ver e dizer pela evidência. Na dança, o meio de manifestar o evidente é o gesto. Todo gesto na dança manifesta a realidade acontecendo, dando-se a ver.


Referência:
(1) HEIDEGGER, Martin. "A sentença de Anaximandro". In: Os pré-socráticos. Coleção Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 34.
- Manuel Antônio de Castro

3

"Aristóteles situa nos primeiros graus do saber a sensibilidade e, no seu âmbito, atribui a primazia à vista porque é o sentido revelador das 'maiores diferenças'.
"No início da Metafísica, Aristóteles distingue as diferentes formas e graus do saber, do eidénai. Eidénai significa originariamente ver, tem a mesma raiz id, presente no latim videre" (1).


Referência:
(1) GRASSI, Ernesto. Arte e mito. Lisboa: Livros do Brasil, s/d, p. 35.

4

"Na vida prática não nos apercebemos de quase nenhuma impressão visual por ela própria, mas sim como qualidades das coisas materiais. E este elemento conceptual e representativo da experiência, o impressionista quer separar do puramente ótico" (1).
As páginas 40, 41 e 42 tratam mais longamente disso, inclusive citando Cézanne: "[...] impressões de cor que, no entanto, têm de ser governadas por uma lógica artística. Daí a sua tão clara distinção entre natureza e arte, que se depreende das citações precedentes" (2).


Referências:
(1) GRASSI, Ernesto. Arte e mito. Lisboa: Livros do Brasil, s/d, p. 42.
(2) Idem, p. 43.

5

O ver é essencial como ponto de partida da constituição do real para o homem. O que está em questão é: o que é a visão do ponto de vista não biológico nem sensível, mas ontológico? Isso está tratado por Heidegger em Ser e tempo. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo (1).


- Manuel Antônio de Castro
Referência:
(1) HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Parte I. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1988, pp. 230-1, onde faz um certo histórico.

6

"Agora talvez se sinta melhor tudo o que esta palavrinha exprime: ver. A visão não é um certo modo do pensamento ou de presença a si, é o meio que me é dado de estar ausente de mim mesmo, de assistir de dentro a fissão do Ser, só no termo do qual eu me fecho sobre mim" (1). À p. 100 cita Rilke e fala do olho, também à pp. 101-2. "Quer isto finalmente dizer que é próprio do visível ter um forro de invisível no sentido estrito, que ele torna presente como uma certa ausência" (2). À pp. 103-4 há uma citação de Klee que é necessário ler, pois são longas e essenciais para entender o ver: "A visão é o encontro, como numa encruzilhada, de todos os aspectos do ser" (3). "Esta precedência daquilo que é sobre aquilo que se vê e se faz ver, daquilo que se vê e se faz ver sobre aquilo que é, é a própria visão" (4).


Referências:
(1) MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. Rio de Janeiro: Grifo, 1969, p. 99.
(2) Idem, p. 103.
(3) Idem, p. 104.
(4) Idem, p. 105.

7

"A verdadeira ação humana é a de ver, isto é, de apreender a realidade em sua totalidade, e esta em seu caráter completo, perfeito. A partir desta visão, sua atividade consiste basicamente em imitar, em procurar transpor a perfeição percebida para o campo e competência dos assuntos e questões humanas. É em imitação, isto é, em obediência às possibilidades e limites que o real sempre e necessariamente aporta que as leis se impõem como necessidade ao homem" (1).


Referência:
(1) FRANCALANCI, Carla. "Antígona e as leis não escritas". In: Revista Tempo Brasileiro, 157. Rio de Janeiro, abr.-jun., 2004, p. 51.

8

Capital é representação. Sem saber não há representação. Saber é a manifestação do que para todos os seres humanos já se deu a ver em tudo que se vê. Antes de ver já vimos e por isso já sabemos como possibilidade. Se não soubéssemos como possibilidade de ver, não poderíamos nunca chegar a saber o que vemos. Esse ver é da estrutura de possibilidade do próprio e não do indivíduo. O saber do ver como possibilidade é a própria essência da techne, no sentido grego, do qual a moderna técnica é uma faceta, uma dimensão.


- Manuel Antônio de Castro.

9

A realidade não pode ser reduzida a uma teoria. Se teoria é o que se vê, daquilo que vemos vemos muito pouco. E aquilo que não se vê em tudo que olhamos e aquilo que nem se dá a ver é muito, muito maior, pois a realidade é contínuo acontecer. Nesse horizonte, toda experienciação nos remete para nossa finitude diante do que “para nós” é e não cessa de ser mistério infinito, porque vigora no silêncio e vazio criadores.


- Manuel Antônio de Castro

10

A luz é a energia do silêncio e seu manto é a claridade. Sem luz não há claridade nem escuridão. A claridade da luz é o sentido e verdade do agir, o vigorar do silêncio da luz. Portanto, a luz é o princípio de tudo, pois dela provêm tanto a claridade quanto a escuridão. E o silêncio é essa energia de plenitude e origem de sentido e verdade em que se constitui originariamente a luz. Como origem de tudo, a luz pode-se mostrar como desvelamento e velamento, como claridade e escuridão. É neste e somente neste horizonte que podemos diferenciar olhar e ver. Podemos olhar tudo e não ver nada. Nesta diferença está a essência do ver porque ele remete para a essência da luz. E é neste sentido que para o grego a luz é o princípio de tudo. Portanto, ver nos diz já originariamente o estar experienciando o princípio de tudo em tudo que se olha. Só assim podemos não apenas olhar, mas, ao mesmo tempo, ver. Para tal dimensão remete a passagem do conto de Rosa "Nada e a nossa condição", no livro Primeiras estórias (1).


- Manuel Antônio de Castro
Referência:
(1) ROSA, João Guimarães. "Nada e a nossa condição". In: ---. Primeiras estórias, 3. e. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967, p. 89.

11

"Liberdade é sempre universal concreto como o humano. Há, portanto, um dar-se a ver e um ocultar, um desvelar e um velar. Desse modo, por detrás de todo olhar deve vigorar sempre um ver. E todo ver só é ver na medida em que é dimensionado pelo pensar. Essa é a complexidade de toda crise e de toda verdade, o que quer dizer de todo paradigma" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "A globalização e os desafios do humano". In: Revista Tempo Brasileiro, 201/202 - Globalização, pensamento e arte. Rio de Janeiro, abr.-set., 2015, p. 21.

12

"...todo conhecimento grego se funda na possibilidade de ver. Ao destruir a visão, Édipo renega, explode, simbolicamente, o conhecimento humano, que se revela limitado, finito, aparente e, portanto, culpado. O ato do trágico rei é o máximo de sofrimento humano, mas também de sua purificação: é a catarse" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "As faces do trágico em Vidas Secas". In: ---. Travessia Poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1977, p. 75.

13

"O que o ver representava para o grego é o pensar para o homem ocidental a partir do Renascimento. Pensar é fundar na linguagem o agir" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "As faces do trágico em Vidas Secas". In: ---. Travessia Poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1977, p. 76.

14

"Desaprender o social, o coletivo, o público e o hábito, que é este ver e interpretar publicamente, socialmente, habitualmente - isso quer pois dizer: retirar-se do uso abusado; retrair-se para o , ensozinhar-se, ou seja, singularizar-se, fazer-se um e . Aprender a desaprender é igual e simultaneamente aprender a ser , é exercício de encaminhamento da solidão para a solidão - o lugar e a hora do ver" (1).


Referência:
(1) FOGEL, Gilvan. "O desaprendizado do símbolo (A poética do ver imediato)". In: Revista Tempo Brasileiro, 171, Permanência e atualidade da Poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 40.

15

realmente inacessível a luz em que habitas, ó Senhor, e não há ninguém, exceto tu, que possa penetrá-la bastante para contemplar-te com clareza. Eu não a vejo, sem dúvida, por causa do seu brilho, demasiado para os meus olhos, e, todavia, o que consigo ver, vejo-o através dela, da mesma maneira que o olho fraco do nosso corpo vê tudo aquilo que vê pela luz do sol, que, no entanto, não se pode contemplar diretamente" (1).


Referência:
(1) ANSELMO, Santo. "Cap. XVI - Que a luz em que ele habita é inacessível". In: Proslógio. Coleção: Os Pensadores. Santo Anselmo - Abelardo. São Paulo: Abril Cultural, 2. e., 1979, p. 113.

16

Por já vigorarmos, por tudovigorar no ser, ele não é fundamento de nada, porque ele simplesmente vigora, independentemente de minhas nomeações e reflexões. Ele está tão próximo, tão próximo que até já desde sempre o somos e nele somos o que somos. E, seguindo Parmênides, o mesmo é ser e saber. É este ser e saber como o mesmo que se torna a questão do educar originário. Mas nossa procura do saber do ser acaba se desviando para o saber imperfeito e limitado e não nos abrimos para o seu sentido que é o máximo de saber, porque o seu sentido é o silêncio em que ele vigora e se dá a ver e a saber. O sentido, o silêncio, o vazio são o mais presente do presente, são sempre o já vigorando e sem o qual nada se dá a saber e a ver. Em virtude de nosso limite de entre-ser temos a tendência a entificar o ser, o saber, o silêncio, o vazio, o nada.


- Manuel Antônio de Castro.

17

"O que é techne? É uma palavra riquíssima de significados em grego e com muitas possibilidades de desdobramento e aplicação. Por isso, quando escutamos hoje a palavra técnica, esta se prende a uma possibilidade de significado da palavra grega, mas não é o seu mais importante. Em primeiro lugar téchnē diz o conhecer por intuição da ex-periência. Tal intuição gera um saber que provém de um ver originário. É o próprio ver originário, aquele ver que antes de ser já era. Para a experiência grega ver é ser" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Amar e ser". In: ---. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 319.
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