Vontade

De Dicionrio de Potica e Pensamento

1

Há uma tensão essencial entre saber e querer, ou seja, entre razão e vontade: logos e poíesis. Essa tensão, como referência dupla essencial (entre poíesis e lógos, vontade e razão, ser e ente, limite e não-limite, verdade e não-verdade), se torna a questão das questões, a questão do entre-ser e da liberdade. Aqui naufraga a subjetividade e se abrem as portas para a questão de ser e mônada (ente). Toda a modernidade é o grande debate sobre a vontade e a razão (querer e saber), afirmados ôntica e epistemicamente. O caminho do tempo e da história, porque onticamente considerados, deságua hoje na memória alargada até o génos / moira. Nesses e por esses a questão se coloca como ser e saber, onde o querer é cura do ser como realização enquanto saber. Daí a questão do mito em Narciso: por que o saber implica a morte? Assim como em Midas, o querer implica também a morte. No entre vige o mito de Prometeu, mas dimensionado pelo mito de Cura, na medida em que esse remete para o fingere. Em todos e sempre presente, a morte. Por isso Cristo, Prometeu, Narciso, Midas, Cura experienciam a Morte, a descida ao rio Léthe. O que a Morte tem a ver com o querer e o não-querer, com verdade e não-verdade? Como questão, o querer é mais complexo do que aquilo que normalmente se compreende por vontade, sobretudo na Modernidade. Evidente que a vontade humana não dá conta da questão da vontade em seu horizonte ontológico, ou seja, em seu sentido essencial.


- Manuel Antônio de Castro

2

"O homem não escolhe nascer. Tampouco escolhe, uma vez tendo nascido, ter de morrer. O homem não escolhe estar lançado no tempo, no jogo entre a vida e a morte, a qual acontece não apenas no termo da vida, mas durante toda a existência. O homem não escolhe surgir em dada época e tradição cultural, que inclusive orientam sua percepção do que é a liberdade. Não escolhe sua língua materna. Não escolhe nascer em um tronco familiar, ter os pais que tem. O homem não escolhe o corpo que tem, nem mesmo seu próprio nome. Tudo isso já lhe foi destinado a partir do desdobramento de outros destinos, em um jogo de espelhos que remete ao infinito" (1).
Por estas constatações essenciais, já podemos avaliar o quanto é limitado o poder da vontade subjetiva. Quem fala em vontade, pressupõe poder.


- Manuel Antônio de Castro.
Referência:
(1) FERRAZ, Antônio Máximo. "Liberdade". In: Convite ao pensar. Org. de Manuel Antônio de Castro e Outros. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2014, p. 133.

3

"Não existe arma mais fatal que a vontade!
A arma mais pontiaguda
Não lhe é comparável!
Não há assaltante mais perigoso
Que a Natureza (Yang e Yin).
Apesar de que não se identifica à natureza
Que causa a desgraça:
É a própria vontade humana!" (1).
Referência:
(1) MERTON, Thomas. A via de Chuang Tzu. 9.e. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 174.

4

"O ser humano, desde Édipo - o mito imemorial que pensa o humano no que lhe é próprio em sua essência sócio-político-histórica - sempre teve a pretensão de ser o sujeito das suas escolhas e realizações. A Moira sorri, em silêncio, diante de tais pretensões, deixando-o iludir-se, em seu pseudo-poder racional de dar-se a existência, segundo a liberdade fundada na sua vontade. É uma ilusão que custa caro e gera o sofrimento de muitos fracassos inúteis" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Eduardo Portella, o professor". In: Quatro vezes vinte - Eduardo Portella - Depoimentos. Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras, 2012, p. 40.

5

"Ser livre é abrir-se para a essência originária do agir, do ético-poético, do pensar. E isso inclui o que nos parece mais livre: a vontade de nosso querer. Eis porque pensar a essência do agir é pensar necessariamente a essência da necessidade e da liberdade. Não basta seguir os impulsos do querer da vontade. Só somos verdadeiramente sendo a partir de e com a essência originária: a nossa necessidade essencial" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Liberdade, vontade e uso de drogas”. In: -----. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 271.

6

Quem pergunta é porque já quer (saber) e este querer não nos vem de nossa vontade, mas do ser / saber (em Parmênides: einai / noein) que nos foi doado e o qual tendemos já desde sempre a realizar completamente, mas porque somos limitados nunca conseguimos de maneira completa, pois nele não mais poderia haver saber e não-saber. Daí surge a dialética enquanto procura incessante de proximidade e distância, de completude e falta, de sentido e não-sentido, de verdade e não-verdade, onde um tal não não indica falta, mas o que já se tem e tem demais e nunca cabe em nossos limites. Por isso, dentro deles só fazemos nos entregar incessantemente à procura da plenitude para a qual tendemos por sermos e não-sermos, e jamais como uma decisão de nossa vontade, que só aparentemente é que quer.


- Manuel Antônio de Castro.

7

"Não-querer significa, em primeiro lugar, um querer, um querer dominado por um não, mesmo no sentido de um não que incide sobre o próprio querer e o recusa. Não-querer significa, portanto, recusar voluntariamente o querer. A expressão não-querer significa também, em segundo lugar, o que é pura e simplesmente estranho a todo tipo de vontade" (1).


Referência:
(1) HEIDEGGER, Martin. "Para discussão da serenidade". In:---------. Serenidade. Lisboa: Instituto Piaget, s/d, p. 32.

8

"A trajetória da compreensão e conhecimento da Essência do ser humano, no Ocidente, será a tensão criativa e permanente de pensamento e linguagem. Dessa maneira, o próprio do ser humano é ser um sendo do "entre”: entre pensamento e linguagem. E entre conhecimento e língua, radicado sempre no princípio de que tudo é E não é. Neste horizonte de pensamento não se pode, de maneira alguma, reduzir o “e” a uma classificação gramatical, esquecida da sua “medida” que é a linguagem e o pensamento do Ser. Esse “e” é o aberto da liberdade de ser o que já é, enquanto possibilidade de verdade e sentido do Ser. Portanto, a liberdade não é um exercício da vontade que conhece, mas um apelo de ser no e pelo sentido da verdade do Ser. É pensando nesse princípio que o poeta Píndaro disse: “Chega a ser o que já és, aprendendo” "(1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "O ser humano e seus limites". In: MONTEIRO, Maria da Conceição e Outros (org.). Além dos limites - ensaios para o século XXI. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2013, p. 230.

9

Lei é a vida enquanto destino. Quando dizemos "é" já estamos nos movendo na Essência. Mas o que é a Essência para que possamos dizer o que é a Lei, o que é a Vida, o que é o Destino? A Essência da Lei é a Lei da Essência. Nem sempre nos damos conta de que desde que nascemos já estamos vivendo sob o poder da Lei. Porém, ela, nesse domínio e poder, toma diferentes faces e dimensões, daí a impressão falsa da liberdade de nossa vontade e de que a lei é algo externo ao que há de mais profundo em nós.


- Manuel Antônio de Castro


10

"Ser interpretação não é uma escolha que dependa da vontade humana. Ao contrário, esta condição ontológica já lhe foi destinada para que seja o que é: homem, um ser que interpreta, e que por isso é livre. Paradoxalmente, sua liberdade é destino" (1).


Referência:
(1) FERRAZ, Antônio Máximo. "O homem e a interpretação: da escuta do destino à liberdade". In: CASTRO, Manuel Antônio de e Outros (Org.). O educar poético. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2014, p. 103.


23

"Não foi o homem que se colocou, por seu livre arbítrio, por sua vontade, no entre do interlúdio. Ele já foi lá colocado desde sempre, senão não seria homem, mas um outro ser. Este entre nele se destina para que seja o que é: um interlúdio entre a liberdade que nele se destina e o destino de nele se dar a liberdade" (1).


Referência:
(1) FERRAZ, Antônio Máximo. "O homem e a interpretação: da escuta do destino à liberdade". In: CASTRO, Manuel Antônio de e Outros (Org.). O educar poético. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2014, p. 104.


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"O operar do questionar no ser humano origina o seu querer, de onde surge a vontade. Igualmente o operar do questionar o faz querer o saber de todo não-saber, de onde lhe advém o intelecto. Não há vontade sem intelecto e nem intelecto sem vontade. Porém, tanto a vontade como o intelecto são doações da phýsis, em seu manifestar-se como questão no ser humano. Este não apenas quer saber por compulsão, de alguma maneira ele sabe sempre o que quer e não-quer, porque quer saber o não-saber de todo querer e questionar" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. " Phýsis e humano: a arte”. In: -----. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 266.


25

Geralmente emprega-se a palavra numinoso quando se quer nomear algo referente ao sagrado. Numinoso origina-se da palavra latina: Numen, numinis. Tem diversos significados (1). Exemplos: ordem, vontade, permissão, vontade divina, onipotência divina, divindade, estátua de uma divindade, poder divino, inspiração divina, oráculo, majestade. Num ditado famoso fica bem evidente o poder e a vontade divinos: "Nihil sine Dei numine geritur: Nada se faz sem a vontade divina". Vontade implica poder. Porém, não podemos confundir o poder e a vontade das forças divinas com o poder e a vontade da razão humana, da consciência humana. Essa diferença é essencial para compreender todo o poder do Destino e a impotência humana diante dele. Este jamais significa uma força cega e do acaso. Acontece que o alcance do poder da vontade humana fundada na razão é impotente para alcançar o âmbito do poder e da vontade divinos. Na literatura, um exemplo clássico é o personagem Édipo, da tragédia de Sófocles: Rei Édipo. Estas observações são importantes para compreendermos o alcance e limites da psicanálise, sobretudo a freudiana, que se fundamenta no poder da razão humana somente. Por isso Jung, mais aberto ao mistério da alma humana ou psique, criará o conceito de arquétipo. Diante disso tudo, só podemos afirmar o poder das obras de arte e o seu mistério. Qualquer teoria racional que as queira abarcar, classificando-as, se torna limitada e insuficiente. Por isso, é essencial se pensar uma Poética, no lugar de uma mera Estética racional e conceitual, que se mova somente nas questões e não nos conceitos racionais.


- Manuel Antônio de Castro.
Referência:
(1) KOEHLER, Pe. H., S.J. Dicionário Escolar Latino - Português. Porto Alegre, Editora Globo, 1957, p. 543.

26

Conforme é tratado por Fritjof Capra no filme O ponto de mutação/O caminho do pensamento, vamos ter uma profunda transformação com o advento da Modernidade, porque se parte para uma outra concepção do universo. Este deixa de ser uma criação divina, sujeita às suas leis. Há leis, sim, mas de outra natureza. Como elas são enigmáticas trata-se de descobrir essas leis da natureza, para dominá-la, submetê-la ao fazer do ser humano, sua vontade e razão. Surge aí a ideia de possibilidade de intervenção do ser humano, descobrindo cada lei que rege o universo, a natureza. Não é que ele queira ser um criador, embora esta ideia depois se torne a dominante na arte, através da imaginação, ainda concebida racionalmente.


- Manuel Antônio de Castro.


27

"O problemático para o ser humano consiste no fato de que faz da dobra essencial um duplo e, assim, acha que pode determinar a essência do agir pelo seu querer manifesto na sua vontade. Isso é impossível. Daí seu desamparo e sofrimento, seus desvios e descuidos, na condução das possibilidades de realização da sua vida, de seu próprio, até se abrir para o acontecer do sentido do ser, a necessidade que o chama em tudo que faz e não faz, pensa e não pensa, é e não-é" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Liberdade, vontade e uso de drogas". In: ----. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 269.

28

"Na essência do agir o que decide não é o querer da vontade, uma vez que a essência do agir é o próprio agir, não a partir da vontade, mas do agir da essência. Essência é o vigorar do que é em tudo que é e está sendo. Este tem seu agir no vigorar do sentido do ser e não no agir das sensações do sujeito, pois o que o “eué se determina pelo ser e não pelo “eu” "(1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Liberdade, vontade e uso de drogas". In: ----. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 275.


29

"Por isso, Édipo, exilado e cego, acompanhado apenas por Antígona, sua filha, perde-se em Colona, no bosque sagrado das Eumênides. Lá poderá descansar na felicidade dos bons. Já atravessou os limites da "vida inconstante": perdeu o trono, a esposa, tudo. Os sofrimentos mostraram-lhe que a vontade consciente de nada vale contra os desígnios divinos, a ordem cósmica que regula o mundo dos mortais" (1).


Referência:
(1) ÉDIPO. In: Mitologia, volumes: 1, 2, 3. São Paulo: Abril Cultural, Editor Victor Civita, 1973, v. 3, p. 548.

30

Quem pergunta é porque já quer (saber) e este querer não nos vem de nossa vontade, mas do ser/saber (em Parmênides: einai/noein) que nos foi doado e o qual tendemos já desde sempre a realizar completamente, mas porque somos limitados nunca conseguimos de maneira completa, pois nele não mais poderia haver saber e não-saber.


- Manuel Antônio de Castro.

31

"Édipo é o próprio ser humano como questão. Ele não tem ascendência divina, não é um deus. No entanto, nele comparecem todas as questões essenciais em que todo ser humano se vê envolvido. Mas não é um ser humano abstrato, uma essência que está não se sabe onde. Não. A concreticidade de sua realidade está no agir constante e ambíguo pelo qual busca o sentido do que ele é em meio ao enigma do real, do qual ele é participante indissolúvel. Quanto mais Édipo (todo ser humano) procura fugir do destino mais ele o realiza. Ele está sempreentre” o agir da sua vontade e inteligência, e o agir da vontade e saber da Moira (destino). Todo agir essencial do ser humano é ambíguo. Ele é sempre um ser-do-entre" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. “Heidegger e as questões da arte”. In: Manuel Antônio de Castro, (org.). Arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p. 22.
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