Travessia

De Dicionrio de Potica e Pensamento

Edição feita às 20h55min de 11 de Maio de 2020 por Profmanuel (Discussão | contribs)

1

"Amável o senhor me ouviu, minha ideia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia" (1).


Referência:
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 6. e. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1968, p. 460.

2

Toda escuta do que se é, é travessia, caminhada, viagem existencial.
"Atravessar o aberto do horizonte não deixa de ser o perigo de perder-se no canto do infinito, no canto doce e divino do aberto, do indeterminado, no aoristo da pura possibilidade" (1).
A música é o mar aberto do tempo onde a travessia é escuta do que nos atrai, mas que o doce canto e o encanto não nos mantém, pois destruiria a travessia. A escuta é a própria travessia: a possibilidade de fazer da fala do silêncio a eclosão do sentido do que se é. A travessia é fazer eclodir no cotidiano o extraordinário. Para que não surja o trágico – fim da travessia – é necessário ter bem patente que a travessia é um movimento ambíguo: da fala para o silêncio e do silêncio para a fala. A palavra cantada é a palavra encantada: a plenificação do sentido do que somos.


- Manuel Antônio de Castro


Referência:
(1) SCHUBACK, Márcia Sá C. Ensaios de filosofia. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 173.

3

Na obra de Rosa, o estar em viagem mostra o homem transiente. Toda travessia é uma caminhada a partir do que se recebeu para ser, daí a necessidade da caminhada cotidiana, sendo tempo em seu sentido de acontecer poético. É uma experienciação poética do tempo e não a viagem-tempo como banal transitoriedade. A viagem, lida na sequência do enredo, parece algo circunstancial e externo. Mas não é. É sempre uma viagem ao "não-sabido", à interioridade pela qual se dá a reunião de exterior e interior. Isto acontece porque é uma viagem-travessia. Nela não acontece só a realização transiente do homem, mas também o manifestar-se do real/mundo. A viagem-travessia é propriamente a viagem da viagem, ou seja, acontece na terceira margem. Nisso, a obra de arte se dá em Rosa como ironia pela qual a própria obra/linguagem se torna o caminho, a questão, isto é, o questionar.


- Manuel Antônio de Castro

4

"No discurso mora sempre uma esperança, a esperança de ser uma ponte entre dois mundos. Toda ponte realiza em seu ser um convite de travessia... Assim não é para chegar que se caminha pelos caminhos do silêncio nas falas. É simplesmente pela alegria de saber o sabor da diferença entre o ser e o nada na aventura criadora do sem-fim" (1).


Referência:
(1) LEÃO, Emmanuel Carneiro. "O silêncio da fala". In: ______. Aprendendo a pensar II. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 28.

5

Trans-verto se articula com caminho e sentido, nisso consistindo a poíesis/ação/sentido. Ora, nesse caminho/travessia se dá e nos é doado, Da-sein. Ser-entre como Hermes/verbo/entre. Por isso, a travessia se dá em três sentidos:
a) Entre vida- morte;
b) No entre de vida e morte;
c) O entre é o entre tanto de vida como de morte.
A viagem / travessia é o vigorar no entre.


- Manuel Antônio de Castro

6

Toda travessia implica uma transformação ambígua. Assim sendo, os ritos iniciáticosque, essencialmente, são uma iniciação, são uma travessia onde o iniciar implica um introduzir não numa outra realidade, que se oporia à primeira, mas no dimensionar a realidade na qual já se está lançado pelo que lhe está oculto. E o que sempre se oculta é a morte.
Iniciar é fazer morrer. Toda travessia se dá na tensão vida- morte, dimensionada na e como experienciação.


- Manuel Antônio de Castro

7

Os dias, as noites, nós, somos uma doação do sol, que tanto mais se dá quanto mais retrai para que cheguemos a ser o que somos: filhos e doação do sol E da terra. No fundo e essencialmente somos a dis-puta de Terra E Sol. Originários do sol e da terra, nosso viver consiste nesse per-curso entre o sol e a terra. Guimarães Rosa chamou a esse per-curso do entre de travessia. É que nesse percurso nos trans-vertemos, nos vertemos na densidade vertente do que nos constitui: sol e terra. O sol é a linguagem que dá sentido, que vivifica e faz eclodir a vida e morte enquanto sentido do que somos, como doação da terra. Por isso nosso corpo é a língua da linguagem. Em todos os sentidos, em nossa constituição poética e ontológica somos sempre e sempre Entre-ser, ou seja: travessia.


- Manuel Antônio de Castro

8

É necessário pensar a travessia na tensão lugar X espaço, porque daí surge a questão da coisa e da quadratura. Heidegger trata disto quando diz: "Os espaços abrem-se pelo fato de serem admitidos no habitar do homem. Os mortais são, isso significa: em habitando têm sobre si espaços em razão de sua de-mora junto às coisas e aos lugares... Sempre atravessamos espaços de maneira que já os temos sobre nós ao longo de toda travessia, uma vez que sempre de-moramos junto a lugares próximos e distantes, junto às coisas" (1).


- Manuel Antônio de Castro


Referência:
(1) HEIDEGGER, Martin. "Construir, habitar, pensar". In: Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 136.

9

A vida do ser humano como experiência temporal da realidade se dá como travessia: o trans-verter-se como apropriação do que é, do próprio que recebeu para chegar a ser no estar sendo da travessia, no verter-se como próprio.


- Manuel Antônio de Castro

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"Já vimos que entre o nada e o tudo, inter-está a travessia, onde a obra é a própria travessia. É o que nos diz esta palavra. Tanto “vertente” como “tra-vessia” formam-se do verbo latino: vertere: o dar corpo ao suceder . A travessia é o entre-verter do trans-acontecer poético do viver enquanto Tao" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Grande Ser-Tao: diálogos amorosos". In: MELO E SOUZA, Ronaldes e Outros (org.). Veredas no Sertão rosiano. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007, p. 144.

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"Pensar diz, portanto, não definir nem conceituar, mas o abrir-se para o aprender a pensar o que é digno de ser pensado. Isso é a travessia: dobra desdobrando-se, sempre inauguralmente" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "A gota d’água e o mar". In: -----. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 246.

12

Pensar a travessia é pensar o caminho, daí podermos encaminhar a compreensão da travessia como a caminhada entre a vida e a morte. No texto a seguir Heidegger nos diz como efetivamente acontece a arte como caminhada ou travessia. "Assim precisamos percorrer efetiva e plenamente o círculo. Isto não é nem uma solução passageira nem é uma deficiência. A posição vigorosa é trilhar este caminho e permanecer nele é a festa do pensar, posto que o pensar é um ofício. Não somente o passo principal da obra para a arte assim como o passo da arte para a obra é um círculo, mas cada passo isolado que tentamos dar circula neste círculo" (1).


- Manuel Antônio de Castro
Referência:
(1) HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Trad. Idalina Azevedo da Silva e Manuel Antônio de Castro. São Paulo: Edições 70, 2010, p. 39.

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"É importante compreender que a travessia não constitui algo que se vem somar ao homem, ou seja, o humano é inerente ao homem, mas aquele [humano] manifesta dimensões que o homem como unidade e autopoiese ainda não contém. Fazer esta diferença como linguagem, mundo e uma certa liberdade ainda não dá conta, porque isso é inerente a toda unidade, mesmo que em diferentes graus, mas que, no fundo, se fazem presentes" (1). É bom lembrar ao leitor que todas estas nuances se devem à misteriosa e complexa palavra grega Logos.


- Manuel Antônio de Castro
Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Poético-ecologia". In: Manuel Antônio de Castro, (org.). Arte: corpo, mundo e terra. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009, p. 27.

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"Um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala. Digo: ... o real não está na saída nem na entrada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia" (1).


Referência:
(1) ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968, p. 52).

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É que a realidade, o nada criativo, é um enigma que permeia o labirinto em que a verdade poética acontece. É o que denominamos questão. A travessia é a questão acontecendo como caminho e caminhada no labirinto que é a realidade em seu acontecer permanente.


- Manuel Antônio de Castro.

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Para compreender e apreender o que é o olhar, o melhor caminho é pensar a diferença ontológica entre olhar e ver. Concretamente, um exemplo clássico pode nos fazer pensar essa diferença: quando Édipo, o famoso personagem do mito de Édipo, pensado por Sófocles em sua famosa obra Rei Édipo, tinha olhos não penetrara e nem vira os caminhos de seu destino. É que o olho é funcional, faz parte do nosso organismo que diz respeito ao olhar, não necessariamente ao ver, pois foi quando arrancou os olhos que passou a ver na luz da verdade os caminhos e descaminhos do seu destino. O olho diz respeito aos sentidos, a visão diz respeito ao sentido. Não basta olhar, é necessário ver. E é nesta distinção fundamental que os gregos pensaram a essência da aletheia, desvelamento ou verdade. Por isso, este diz respeito à manifestação do sentido do destino. E é nesse horizonte que se diferencia radicalmente a verdade da obra de arte e a verdade funcional da lógica, que fundamenta a ciência fundada na razão. Essencialmente, como vemos, há um só caminho, uma só travessia: a da ausculta do destino. Por isso, a ciência e sua verdade nos conduz a muitos descaminhos, porque são caminhos que não nos conduzem para a plenitude do que somos e recebemos para ser: nosso destino. A vida de Édipo nos mostra de uma maneira exemplar os seus descaminhos até se auscultar e enveredar pelo único caminho: ser o que recebeu para ser, ser o que lhe foi destinado pela Moira.


- Manuel Antônio de Castro.

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"Zeus, na sua união com Thêmis (Lei Ancestral, Ordem) gera a Ordenação interior de seu reinado, a Ordem em todos os seus aspectos, pois dessa união nascem suas filhas Hôrai e Môirai, que dosam e regram a distribuição de bem e de mal. Isto é possível porque de uma outra união, com Mêtis (sapiência, saber e sabedoria), ele incorpora toda a sabedoria, que lhe assegura um poder sobre o imprevisível, pois com Mêtis ele conhece o bem e o mal, cambiante e instável como a natureza do mar, onde todos, como eternos Ulisses, fazemos a caminhada de travessia" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Ulisses e a Escuta do Canto das Sereias”. In: -----. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 163.

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"Todo o mito (toda travessia humana) gira em torno da fala e da escuta" (1). Todo mito é uma experienciação poética da travessia humana, pois todo mito se tece e entretece em torno da alguma questão ou algumas questões. É nestas que todo ser humano realiza a sua travessia.


- Manuel Antônio de Castro.


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Ulisses e a Escuta do Canto das Sereias”. In: -----. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 157.

19

"Na travessia da vida, viver é muito perigoso, como nos lembra insistentemente Ulisses nas suas aventuras e desventuras. É o mesmo itinerário de Riobaldo, em Grande sertão: veredas, onde colhemos a mais densa interpretação do mito poético enquanto travessia. Assim Rosa conclui seu romance: “Existe é homem humano. Travessia” (Rosa: 1968, 460) (1). Na e pela tra-vessia nos trans-vertemos (do verbo latino trans-vértere), ou seja, nos apropriamos do que nos é próprio, como sentido e verdade do que somos, em uma forma em formação permanente de libertação. Então forma deixa de ser forma para ser presença. Esta é o tudo no limite do sem limite ou ilimitado" (2).


Referência:
(1) ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 6. e. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968.
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Ulisses e a Escuta do Canto das Sereias”. In: -----. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 154.

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"O ser humano é uma doação da linguagem. Sempre se movendo na linguagem em sua ânsia essencial de ser o não-ser, procura incessantemente o horizonte de seu mistério e presença como escuta de sua fala. A escuta exige de nós uma entrega e caminhada, que se tornam uma travessia, um percurso de iluminação. Ela nos leva à fala da sua escuta para melhor escutá-la. É quando a palavra se torna o vigor de seu desvelamento e velamento como língua. Porque a palavra é o vigor desse " entre " que identifica e diferencia fala e silêncio, desvelamento e velamento. E assim surgem algumas das mais importantes reflexões dos pensadores " (1). O percurso de iluminação nos conduz a uma posse do sentido do que somos e recebemos para ser. Na iluminação, o sentido do ser acontece em nós. Será, portanto, um percurso ontológico e não meramente temporal ou espacial. O ontológico é o originário de todo espaço e tempo, de toda época e do mundo que lhe corresponde. Iluminação é mundo de sentido e verdade, verdade ontológica, aletheia. No e pelo ontológico o percurso como caminhada é de mergulho na memória, que a tudo preside. A iluminação provoca em nós a experienciação da sabedoria e uma caminhada de libertação. Não há iluminação sem desprendimento e recolhimento. E será uma caminhada ou travessia para a plenitude de realização do sentido do que recebemos para ser, será uma apropriação do próprio. No recolhimento apreendemos o sentido de nosso agir.


- Manuel Antônio de Castro
Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "O ser e a aparência". In: ---------. www.travessiapoetica.blogspot.com.

21

"A estética não funda. Pelo contrário, é fundada pela poética, porque esta radica na essência do agir. É a essência do agir. É também o que Guimarães Rosa considera ser a travessia – uma tarefa poética – em Grande sertão: veredas. “Existe é homem humano. Travessia” (1),(1968, 460). Ela dá-se no entre de nada e tudo. Dando-se no “entre”, toda nossa tarefa poética, enquanto vigorar da necessidade, da liberdade e da verdade, consiste em um acontecer poético, em que no ordinário se o extraordinário. “A morada do homem, o extraordinário: Ethos anthropou daímon (Heráclito: 1991, 91)" (2) " (3).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Liberdade, vontade e uso de drogas". In: ----. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 278.
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