Corpo

De Dicionrio de Potica e Pensamento

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: Outro é o [[ritmo]] do [[tempo]] em sua densidade [[poética]], de onde surgem [[relações]] [[afetivas]] sob a efetiva [[vigência]] do [[tempo]] de [[eros]], na [[vigência]] do [[tempo]] da [[proximidade]] e da [[distância]]. Temos de [[compreender]] que o [[tempo]] acontece no compasso do [[ser]] corpo, do [[incorporar]] o que se [[é]] e está [[sendo]]. Não é o [[fazer]] que faz o corpo e suas [[experienciações]], mas o [[ser]], realizando-se, incorporando-se, acontecendo, [[sendo]]. Dessa maneira, a [[relação]] e [[referência]] [[entre]] [[corpos]] tem uma [[duração]] própria e não [[técnica]] nem [[mecânica]], inacessível às [[experiências]].
: - [[Manuel Antônio de Castro]].
: - [[Manuel Antônio de Castro]].

Edição de 03h15min de 5 de Novembro de 2017

1

Corpo é uma questão. E como questão não cabe numa definição que o configure enquanto essência. Qualquer resposta implica necessariamente um mergulho nas questões em que o corpo se tece e entretece: O que é o Ser? O que é o ser humano? O que é a verdade? Não são três questões sucessivas, porém, a referência de Ser e essência do ser humano acontece no desvelar-se enquanto verdade. A esse desvelamento denominaram todas as culturas e épocas: corpo.


- Manuel Antônio de Castro

2

As recentes descobertas da genética podem esclarecer nossa compreensão do corpo e da alma. O que Fritjof Capra afirma no livro A teia da vida (1) é que cada célula é uma parte que, em si, contém o todo. O que ocorre em micro ocorre em macro. É o código genético que sempre comparece e desfaz a visão tradicional metafísica, acentuada pelo cartesianismo. Capra fala de reciclagem e resíduos no processo de a célula se produzir e reproduzir, produzindo o próprio código genético. Guimarães Rosa no conto "Nada e a nossa condição" (2) mostra, no final, a "cremação" do corpo/casa e depois de um ascender acima da montanha numa transfiguração misteriosa, onde luz e trevas não se distinguem, descem à Terra as cinzas. Resíduos? Mas não são as cinzas que refertilizam a terra-mãe? Contudo, há algo mais complexo: a relação do código genético com a Moira / destino, ou seja, a realização de cada um em seu sentido. A genética não fala da realização do corpo como sentido e experienciação de vida. A reunião da genética com o sentido da vida dá-se no mito de "Cura", de Higino. Trata-se de refletir aí sobre a ação em seu sentido originário. Temos ser, conhecer e dizer, inter-ligados. Aí o enigma se dá em torno do "inter", que é o solo comum onde cresce o ser, o conhecer/perceber e o dizer (em grego: on/einai, noein, leguein). É a ação e seu sentido que dão o alcance de cada um desses três núcleos. Mas uma tal ação provém do "inter". Ora, no ser humano, o "código genético", se comparado com o de um outro qualquer on/ente, mostra uma diferença radical: se, por um lado, já lhe é doado, por outro, o "seu sentido" vem do agir que une einai/ser, noein/perceber, leguein/dizer. Porém, um tal agir tende para a sua plenitude de sentido na medida em que há uma transfiguração, mas num nível e densidade que vão além do que ocorre na célula de uma planta. Na cadeia da vida, vida e morte são um processo em diferentes escalas de metabolismo, reciclagem e resíduos. Contudo, o que isso quer dizer em termos do ser humano, enquanto o humano do ser humano? Não seria o que Rosa nos diz? Mas então como distinguir corpo e alma? Não podemos considerar o corpo como algo apenas, mas o que nesse algo se realiza como mundo e sentido. E é neste horizonte que deve ser considerada nossa finitude frente ao não-finito.


- Manuel Antônio de Castro


Referências:
(1) CAPRA, Fritjof. A teia da vida. São Paulo: Cultrix, 2004.
(2) ROSA, João Guimarães. "Nada e a nossa condição". In: ______. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.

3

Descartes separa o ser-humano-corpo em duas realidades: res cogitans/realidade pensante e res extensa/realidade extensa. Essa divisão é a base da modernidade, daí a dificuldade de hoje pensar o corpo como um todo. Não só isso, experienciá-lo como um todo. A argumentação da consciência, determinando não só o ser mas o próprio real/corpo só é aceitável se admitirmos a dicotomia cartesiana. Isso levou a entender a leitura apenas como um exercício racional-silencioso ou em voz alta, mas do qual se afastou o corpo. A tripla leitura de voz-razão, música e dança procura resgatar a leitura-corpo. Mas essas três só são possíveis a partir da escuta do que se é. No que se é, nunca há dicotomia cartesiana. As observações de Freud não seriam, no fundo, sobre a recusa do corpo como um todo?


- Manuel Antônio de Castro

4

Pode-se pensar o corpo como conceito ou como questão. E, então, tudo será diferente em relação ao corpo e em nossa relação com ele. No corpo, todas as filosofias, religiões e teorias científicas são aí contidas, incorporadas. Mas quando deixamos o corpo ser, ele se tornará corpo-poesia e corpo-pensamento. O corpo como corpo é sempre insólito, admirável, misterioso, mágico. Deixar o corpo ser corpo, pensar o corpo, eis a questão. Toda obra de arte é um corpo se é obra de arte. Não importa a Musa que a preside.


- Manuel Antônio de Castro



5

A tensão entre poiesis e linguagem se dá concretamente na estrutura. Aí podemos entender estrutura de duas maneiras: como organização e como corpo. É nesta distinção que se decide essencialmente a di-ferença e re-ferência entre função e referência. Na relação, o corpo está em função da organização, do sistema enquanto faz estes funcionarem tendo em vista o próprio sistema, sem levar em conta o corpo. Corpo é a con-figuração do ser humano tendo em vista o que é enquanto identidade e existência, e não mera organização, ou seja, não se reduz a ter uma função dentro da organização.


- Manuel Antônio de Castro

6

A ideia de corpo do ser humano é muito restrita como tal. Contudo, ele, como célula de um corpo maior, contém todo o código genético, toda memória. Que corpo maior seria este?
Em princípio, há três corpos, claro, perfazendo e sendo um e o mesmo no sentido de Heráclito: "[...] hèn pánta eînai" (1).
Na realidade, são três corpos misteriosamente unidos. O mais imediato é meu corpo, com tudo que sou e não sou. Mas este está integrado a um corpo maior que é a mãe Terra. Desta faz também parte a Lua e os demais planetas, indo até não se sabe onde. É no corpo terra-lua que estão integrados todos os corpos sociais, constituídos pelos diferentes povos e culturas. Todo social está integrado a uma terra-lua. A presença da Lua e dos planetas se dá misteriosamente. O exemplo mais pregnante é a referência: Mulher-Terra-Lua. A Lua como satélite da Terra é um conceito que não leva a nada. Já a Lua como corpo-terra se faz presente nas marés, nas estações, nas colheitas. Faz-se muito mais presente no ciclo lunar e no ciclo menstrual da mulher. Isso quer dizer que está profunda e misteriosamente ligada à fertilidade, que dá a identidade do que é ser mulher, e ao ciclo vida/morte. Mas há um terceiro corpo que a tudo engloba numa ciranda incessante e maravilhosa. É o grande Corpo Místico como Dzoé. Esta engloba todas as formas de vida e todos os ecossistemas. A ela está ligada a Memória, o Tempo e a Linguagem. Tanto o Corpo-ser-humano como o Corpo-Terra-Lua-Mulher têm seu vigor originário e inaugural no Corpo-Místico-Dzoé.


- Manuel Antônio de Castro


Referência:
(1) HERÁCLITO. Os pensadores originários. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 71.

7

O corpo é o mistério do limiar, a borda de todo trans-bordamento. Daí, o corpo é o vestir do "trans-", que ao se dar com "trans-", permite o aparecimento do corpo como limiar onde convive a borda, a margem e o trans-bordamento, imbricando-se mutuamente. De modo que, o que chamamos de alma é a borda se fazendo alegria, beleza, vida do trans-bordamento e do trans- da travessia. Nela, a diferença e diversidade são um e o mesmo como corpo de verdade e sentido e de fala e voz, escuta e silêncio. Corpo é a visibilidade ressoante do trans: transbordamento e trans-vessia, do diferir na identidade de vida/morte.


- Manuel Antônio de Castro



8

A exigência moderna de se partir do ser humano, impõe que se pense e compreenda o entre-ser como corpo. Esse "corpo" se constitui e se figura no poder-ser como questão, em que ela é poético-onto-fenomenologicamente o pro-jeto das possibilidades do poder-ser como disposição e compreensão. Como entre-ser o corpo é a Cura e as pro-curas, e reúne em-si e no para-si, como abertura dada pela Cura, mundo e verdade. A nossa condição "corporal" é ser-no-mundo, ser-em e ser-com. Realizar o projeto do entre-ser e o entre-ser do projeto é realizar o poder-ser inerente ao entre, à Cura. E isso é realizar o corpo. Realizar o corpo é realizar o ser-humano como Entre-ser. Tal realização se dá na medida em que o corpo se torna obra de arte, ou seja, o sentido do entre-ser.


- Manuel Antônio de Castro


Ver também:

9

"O corpo é sensação, percepção, captação do que nos atravessa os poros. Mas não só. É também o acúmulo do nada, um vazio gestante sempre prestes a acontecer. Assim, é algo ainda não nascido em sua própria caminhada de mortal-avivamento. A possibilidade de ser outro em si mesmo assinala sua liminaridade. Às vezes não sabemos se é corpo ou homem, se é morte ou vida, vazio ou inteiro. Entretanto, embora não saibamos, podemos nos deixar possuir por este não-saber e trilhar a passagem do não-visível ao visível. Assim, sabemos não-sabendo o que seja corpo, mais ainda, o que seja homem" (1).


Referência:
(1) PESSANHA, Fábio Santana. "Homem: corpo insólito". In: GARCÍA, Flavio; PINTO, Marcello de Oliveira; MICHELLI, Regina (orgs.). O insólito e seu duplo – Anais do VI Painel Reflexões sobre o Insólito na narrativa ficcional/ I Encontro Regional Insólito como Questão na Narrativa Ficcional. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2010, p. 145.



10

"O corpo é entendido, hoje, como organismo, funcionando como combinação estrutural entre partes; como produto de um código genético, mapeável determinação que operacionaliza todo o nosso devir biológico; como entidade étnico-política, representando valores nos vetores do jogo de forças sociais; como força de trabalho a serviço de um projeto econômico e político que escraviza os corpos que promete libertar pelo consumo; como matéria e forma combinadas de diversas maneiras, conforme a estética que se imponha em cada conjuntura ou que se exponha em cada produto cultural. Por um lado, fica claro que não se entende o corpo em sua corporeidade – porque já não se pergunta pelo vigor que o corpo é. Por outro, o que é comum a todos estes encaminhamentos não-corporais de representação do corpo é o entendimento de que ele seja algo como uma unidade material do ente (1).


Referência:
(1) BRAGA, Diego. A terceira margem do mito: hermenêutica da corporeidade. In: Revista Terceira margem. Revista do Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ. Ano XIV, 22, jan.-jun, 2010, p. 53.


11

"A cada cultura corresponde alguma concepção de corpo, pois só podemos falar de cultura e corpo já no horizonte de uma concepção do que seja o homem e a realidade. E, hoje, apelar para alguma disciplina e verdade científica como teoria certa, exata e única, é uma nescidade. Na globalização, a "religião da ciência e seus dogmas e verdade única" ruiu" (1).


Referência:


(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "A filosofia e o pensamento do corpo". In: MONTEIRO, Maria Conceição e GIUCCI, Guillermo (Org.). Desdobramentos do corpo no século XXI. Rio de Janeiro: Editora Caetés / FAPERJ, 2016, p. 15.

12

"O que vem à presença e aparece a partir de si mesmo são os corpos (somata, em grego) animados e inanimados. Aquilo que, de maneira bem indeterminada nós nomeamos espaço é representado na ótica do corpo vindo à presença" (1).


Referência:
(1) HEIDEGGER, Martin. Remarques sur art - sculpture - espace. Trad. do alemão por: Didier Franck. Paris: Rivages poche / Petite Bibliothèque, 2009, p. 18. Tradução do francês: Manuel Antônio de Castro.

13

“O corpo é uma contínua dança de diferenças, elos que se fazem e desfazem mediante a tensão que é viver morrendo. Desse modo, o corpo se alarga e se desprende da organicidade para se dispor como enleio poético de existência. A necessidade de se delimitar uma corporeidade orgânica se detém na limitação da pele enquanto fronteira do sensível, no entanto, o que não podemos deixar de considerar é que esta é apenas uma possibilidade de manifestação corporal que se conjunta com o que seja inapreensível no sentir do corpo. Afinal, como se mede o amor que fere o corpo? Como se mede a dor de uma ausência ou a felicidade de uma presença?” (1)


Referência:
(1) PESSANHA, Fábio Santana. A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2013, p. 50.


14

"Em meio às muitas procuras de cura, é a própria Cura a nossa cura de nossas procuras. Ela é tanto o equilíbrio externo quanto o interno, cujo centro vital é nosso ser, nosso próprio. Como? Na harmonia de estar e ser, porque como seres do entre sempre estamos sendo. Ora tendemos mais para o estar, ora para o ser, quando o essencial é procurar e achar a justa medida de ser e estar" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "O mito de Cura e o ser humano". In: --------. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 232.

15

“O corpo é um repleto de diferenças que se articulam no uno, é mar que se deriva em arrebentação” (1).


Referência:
(1) PESSANHA, Fábio Santana. A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2013, p. 121.


16

"Considerando que somos um corpo, não um organismo, não há distinção entre o material, o intelectual e o afetivo-sentimental. Somos uma unidade corporal enquanto corpo-eros-mundo" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Obra de arte, vocabulário e mundo". In: ------------. Leitura: questões. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2015, p. 251.


17

A resposta à questão “o que é o corpo” é muitas vezes confundida com organismo, porque não se considera a questão que lhe é correlata da diferença ontológica, isto é, a diferença que constitui a especificidade do ser humano e o distingue de todos os demais entes, sejam eles animais, vegetais, minerais. Por tal diferença o ser humano se torna humano na medida em que ontologicamente já mora na clareira do ser e só pelo pensar do ser que nele se dá, ele desvela no seu agir o sentido de todos os demais entes.


- Manuel Antônio de Castro


18

Outro é o ritmo do tempo em sua densidade poética, de onde surgem relações afetivas sob a efetiva vigência do tempo de eros, na vigência do tempo da proximidade e da distância. Temos de compreender que o tempo acontece no compasso do ser corpo, do incorporar o que se é e está sendo. Não é o fazer que faz o corpo e suas experienciações, mas o ser, realizando-se, incorporando-se, acontecendo, sendo. Dessa maneira, a relação e referência entre corpos tem uma duração própria e não técnica nem mecânica, inacessível às experiências.


- Manuel Antônio de Castro.
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