Travessia

De Dicionário de Poética e Pensamento

Edição feita às 14h13min de 8 de Julho de 2019 por Profmanuel (Discussão | contribs)

1

"Amável o senhor me ouviu, minha ideia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia" (1).


Referência:
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 6. e. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1968, p. 460.

2

Toda escuta do que se é, é travessia, viagem.
"Atravessar o aberto do horizonte não deixa de ser o perigo de perder-se no canto do infinito, no canto doce e divino do aberto, do indeterminado, no aoristo da pura possibilidade" (1).
A música é o mar aberto do tempo onde a travessia é escuta do que nos atrai, mas que o doce canto e o encanto não nos mantém, pois destruiria a travessia. A escuta é a própria travessia: a possibilidade de fazer da fala do silêncio a eclosão do sentido do que se é. A travessia é fazer eclodir no cotidiano o extraordinário. Para que não surja o trágico – fim da travessia – é necessário ter bem patente que a travessia é um movimento ambíguo: da fala para o silêncio e do silêncio para a fala. A palavra cantada é a palavra encantada: a plenificação do sentido do que somos.


- Manuel Antônio de Castro


Referência:
(1) SCHUBACK, Márcia Sá C. Ensaios de filosofia. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 173.

3

Na obra de Rosa, o estar em viagem mostra o homem transiente. É uma experienciação poética do tempo e não a viagem-tempo como banal transitoriedade. A viagem, lida na sequência do enredo, parece algo circunstancial e externo. Mas não é. É sempre uma viagem ao "não-sabido", à interioridade pela qual se dá a reunião de exterior e interior. Isto acontece porque é uma viagem-travessia. Nela não acontece só a realização transiente do homem, mas também o manifestar-se do real/mundo. A viagem-travessia é propriamente a viagem da viagem, ou seja, acontece na e à terceira margem. Nisso, a obra de arte se dá em Rosa como ironia pela qual a própria obra/linguagem se torna o caminho, a questão, isto é, o questionar.


- Manuel Antônio de Castro

4

"No discurso mora sempre uma esperança, a esperança de ser uma ponte entre dois mundos. Toda ponte realiza em seu ser um convite de travessia... Assim não é para chegar que se caminha pelos caminhos do silêncio nas falas. É simplesmente pela alegria de saber o sabor da diferença entre o ser e o nada na aventura criadora do sem-fim" (1).


Referência:
(1) LEÃO, Emmanuel Carneiro. "O silêncio da fala". In: ______. Aprendendo a pensar II. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 28.


5

Trans-verto se articula com caminho e sentido, nisso consistindo a poíesis/ação/sentido. Ora, nesse caminho/travessia se dá e nos é doado, Da-sein. Ser-entre como Hermes/verbo/entre. Por isso, a travessia se dá em três sentidos:
a) Entre vida-morte;
b) No entre de vida e morte;
c) O entre é o entre tanto de vida como de morte.


- Manuel Antônio de Castro


6

Toda travessia implica uma transformação ambígua. Assim sendo, os ritos iniciáticos são uma travessia onde o iniciar implica um introduzir não numa outra realidade que se oporia à primeira, mas no dimensionar a realidade na qual já se está lançado pelo que lhe está oculto. E o que sempre se oculta é a morte.
Iniciar é fazer morrer. Toda travessia se dá na tensão vida-morte, dimensionada na e como experienciação.


- Manuel Antônio de Castro


7

Os dias, as noites, nós, somos uma doação do sol, que tanto mais se dá quanto mais retrai para que cheguemos a ser o que somos: filhos e doação do sol E da terra. No fundo e essencialmente somos a dis-puta de Terra E Sol. Originários do sol e da terra, nosso viver consiste nesse per-curso entre o sol e a terra. Guimarães Rosa chamou a esse per-curso do entre de travessia. É que nesse percurso nos trans-vertemos, nos vertemos na densidade vertente do que nos constitui: sol e terra. O sol é a linguagem que dá sentido, que vivifica e faz eclodir a vida e morte enquanto sentido do que somos, como doação da terra. Por isso nosso corpo é a língua da linguagem. Em todos os sentidos, em nossa constituição poética e ontológica somos sempre e sempre Entre-ser, ou seja: travessia.


- Manuel Antônio de Castro

8

É necessário pensar a travessia na tensão lugar X espaço, porque daí surge a questão da coisa e da quadratura. Heidegger trata disto quando diz: "Os espaços abrem-se pelo fato de serem admitidos no habitar do homem. Os mortais são, isso significa: em habitando têm sobre si espaços em razão de sua de-mora junto às coisas e aos lugares... Sempre atravessamos espaços de maneira que já os temos sobre nós ao longo de toda travessia, uma vez que sempre de-moramos junto a lugares próximos e distantes, junto às coisas" (1).


- Manuel Antônio de Castro


Referência:
(1) HEIDEGGER, Martin. "Construir, habitar, pensar". In: Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 136.


9

A vida do ser humano como experiência temporal da realidade se dá como travessia: o trans-verter-se como apropriação do que é, do próprio que recebeu para chegar a ser no estar sendo da travessia, no verter-se como próprio.


- Manuel Antônio de Castro


10

"Já vimos que entre o nada e o tudo, inter-está a travessia, onde a obra é a própria travessia. É o que nos diz esta palavra. Tanto “vertente†como “tra-vessia†formam-se do verbo latino: vertere: o dar corpo ao suceder . A travessia é o entre-verter do trans-acontecer poético do viver enquanto Tao" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Grande Ser-Tao: diálogos amorosos". In: MELO E SOUZA, Ronaldes e Outros (org.). Veredas no Sertão rosiano. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007, p. 144.

11

"Pensar diz, portanto, não definir nem conceituar, mas o abrir-se para o aprender a pensar o que é digno de ser pensado. Isso é a travessia: dobra desdobrando-se, sempre inauguralmente" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "A gota d’água e o mar". In: -----. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 246.


12

Pensar a travessia é pensar o caminho, daí podermos encaminhar a compreensão da travessia como a caminhada entre a vida e a morte. No texto a seguir Heidegger nos diz como efetivamente acontece a arte como caminhada ou travessia. "Assim precisamos percorrer efetiva e plenamente o círculo. Isto não é nem uma solução passageira nem é uma deficiência. A posição vigorosa é trilhar este caminho e permanecer nele é a festa do pensar, posto que o pensar é um ofício. Não somente o passo principal da obra para a arte assim como o passo da arte para a obra é um círculo, mas cada passo isolado que tentamos dar circula neste círculo" (1).


- Manuel Antônio de Castro
Referência:
(1) HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Trad. Idalina Azevedo da Silva e Manuel Antônio de Castro. São Paulo: Edições 70, 2010, p. 39.

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"É importante compreender que a travessia não constitui algo que se vem somar ao homem, ou seja, o humano é inerente ao homem, mas aquele [humano] manifesta dimensões que o homem como unidade e autopoiese ainda não contém. Fazer esta diferença como linguagem, mundo e uma certa liberdade ainda não dá conta, porque isso é inerente a toda unidade, mesmo que em diferentes graus, mas que, no fundo, se fazem presentes" (1). É bom lembrar ao leitor que todas estas nuances se devem à misteriosa e complexa palavra grega Logos.


- Manuel Antônio de Castro
Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Poético-ecologia". In: Manuel Antônio de Castro, (org.). Arte: corpo, mundo e terra. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009, p. 27.


14

"Um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala. Digo: ... o real não está na saída nem na entrada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia" (1).


Referência:
(1) ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968, p. 52).


15

É que a realidade, o nada criativo, é um enigma que permeia o labirinto em que a verdade poética acontece. É o que denominamos questão. A travessia é a questão acontecendo como caminho e caminhada no labirinto que é a realidade em seu acontecer permanente.


- Manuel Antônio de Castro.


16

Para compreender e apreender o que é o olhar, o melhor caminho é pensar a diferença ontológica entre olhar e ver. Concretamente, um exemplo clássico pode nos fazer pensar essa diferença: quando Édipo, o famoso personagem do mito de Édipo, pensado por Sófocles em sua famosa obra Rei Édipo, tinha olhos não penetrara e nem vira os caminhos de seu destino. É que o olho é funcional, faz parte do nosso organismo que diz respeito ao olhar, não necessariamente ao ver, pois foi quando arrancou os olhos que passou a ver na luz da verdade os caminhos e descaminhos do seu destino. O olho diz respeito aos sentidos, a visão diz respeito ao sentido. Não basta olhar, é necessário ver. E é nesta distinção fundamental que os gregos pensaram a essência da aletheia, desvelamento ou verdade. Por isso, este diz respeito à manifestação do sentido do destino. E é nesse horizonte que se diferencia radicalmente a verdade da obra de arte e a verdade funcional da lógica, que fundamenta a ciência fundada na razão. Essencialmente, como vemos, há um só caminho, uma só travessia: a da ausculta do destino. Por isso, a ciência e sua verdade nos conduz a muitos descaminhos, porque são caminhos que não nos conduzem para a plenitude do que somos e recebemos para ser: nosso destino. A vida de Édipo nos mostra de uma maneira exemplar os seus descaminhos até se auscultar e enveredar pelo único caminho: ser o que recebeu para ser, ser o que lhe foi destinado pela Moira.


- Manuel Antônio de Castro.
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