Mito
De Dicionrio de Potica e Pensamento
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Edição de 03h09min de 26 de março de 2016
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- Hoje as ciências cognitivas, antigas ciências do espírito, já se dão conta de que é essencial trazer para a questão não só a vida do homem, mas também sua vida experienciada no cotidiano. Porém, do cotidiano enquanto ordinário sempre falaram as artes, não para reproduzi-lo, mas para surpreendê-lo e apreendê-lo na dimensão do extra-ordinário. Porque entre um e outro é que se dá o vigor do poético, o ditar do sagrado enquanto energia que a tudo realiza. Por isso, o mito se dá sempre no entre acontecer dos ritos enquanto vigorar dos mitos. Quando os ritos representam e esquecem os mitos, começa a necessidade de criar o simbólico. As ciências cognitivas se não ouvirem o poder do mito como presença na experienciação cotidiana do extraordinário estarão ainda tolhidas e surdas para a fala e voz da essência do humano.
- A cultura: tudo que o homem faz, pensa, quer, sente e crê.
2
- "Nesta circulação [poético-ontológica], o homem é, pois, uma realização que diretamente só alcança realizações e jamais chega à realidade. Mas às vezes produz realizações privilegiadas que parecem abolir a diferença da temporalidade, pois dão acesso, embora indireto e oblíquo [eis modos de a verdade se manifestar], aos mistérios da realidade. São os mitos. Em seu envio se faz a experiência de momentos intensos de uma temporalidade não apenas povoada de realizações, mas sobretudo integrada pela realidade" (1).
- Referência:
- (1) LEÃO, Emmanuel Carneiro. Filosofia grega - uma introdução. Teresópolis: Daimon Editora, 2010, p. 47.
3
- O mito é a língua do sagrado. A linguagem é o sagrado se manifestando na língua do mito. Por isso, o mito é a linguagem de toda língua. Porém, devemos distinguir mito e rito. O rito é o mito concretizado nos gestos dos rituais, na medida em que o mito, nesse sentido, é a narração do sagrado. Dessa maneira, na medida em que se constitui como gestos, não podemos reduzir o rito do mito a um discurso nem a uma escritura, pois a estes falta a densidade do sentido do mito. E é mais, é o logos do sagrado enquanto o silêncio do nada criativo.
4
- Na poesia, o que se revela memória do mito é o apelo do lógos para dizê-lo. Por isso, mais no silêncio e no vazio do que nas palavras, sons, gestos e cores, está presente o mito enquanto memória do silêncio da poesia. O rito é o lógos se fazendo palavras, música, dança e pintura do mito.
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- Os mitos no sentido moderno são: "[...] progresso, liberdade, igualdade e tantos outros criados pela razão moderna" (1). Ora estes mitos constituem a paideia da Bildung. Dela se afasta a paideia da poíesis.
- Referência:
- (1) SOARES, André Marcelo Machado. "Nietzsche e Heidegger na teologia de Paul Tillich". In: Caderno de Letras, nº 16. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, Departamento de Letras Anglo-Germânicas, p. 127.
6
- "A recompensa, por se existir na ponte do tempo entre o silêncio e a fala, é avançar sempre e nunca parar" (1). O mito é também o silêncio do rito. O rito é a fala do mito.
- Referência:
- (1) LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar II. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 28.
7
- Uma reflexão da ligação do mito com a literatura e a arte está exposta na interpretação de Schuback: "Ao narrar que Ulisses [Kafka] com cera nos ouvidos jamais poderia ouvir que as sereias não teriam cantado e, assim, descobrir que o mito seria ilusão, Kafka mostra que a literatura é itinerário para a verdade do mito. Literatura é a saga de Ulisses de volta para o mito" (1). Não só Ulisses tapa os ouvidos com cera, mas as sereias não cantam: "Mais do que silêncio, elas deixam em cena o seu não-canto e assim a ausência de encantamento que constituem 'armas ainda mais terríveis do que o canto'" (2). O canto cotidiano nos enche de contentamento, mas nos pode obstruir o caminho para o não-encantamento, para o silêncio. E esta pode ser a verdade do mito, o supremo encantamento, a morte, porque depois que o silêncio fala, qualquer palavra é excessiva, cada um achou a sua plenitude. Ulisses ao ouvir o que não pode ser ouvido só se salva porque se amarra ao limite que toda fala implica. O máximo de limite da fala frente ao ilimitado de todo silêncio está na palavra cantada, onde o encantamento advém como real e como possível, como desvelado e velado, como ordinário e extraordinário, onde a ambiguidade se faz o uno de toda diversidade. A palavra cantada sendo sucessão de sons se faz sentido enquanto uno de toda realidade. Por isso, o ritmo é o real se dando, se manifestando em formas no devir contínuo da não-forma. Eis porque na pausa não há ritmo, só na fala cantada do silêncio.
- Referências:
- (1) SCHUBACK, Marcia Sá Cavalcante. "As cordas serenas de Ulisses". In: Ensaios de Filosofia. Petrópolis: Vozes, 1999, p.165.
- (2) Idem, p. 164.
8
- Emmanuel Carneiro Leão diz que a filosofia, mais que um conhecimento ou uma ideologia ou uma visão de mundo, é uma experiência de pensamento. "Mas essa experiência de pensamento que nós não sabemos ainda o que é precisamente não é a única experiência grega, nem a única experiência grega de pensamento. Outra experiência de pensamento é o mito, a mística. Outras são os deuses e o extraordinário. Ainda há uma outra, a poesia e a arte. Uma outra experiência de pensamento é a pólis e a politéia, isto é, a organização, a ordem política da cidadania... uma outra... a primeira experiência grega de pensamento é a vida e a morte, Eros kai Thanatos" (1). Penso que por essa riqueza de experiência de pensamento é que se dá a complexidade da linguagem (mito, lógos, épos), a própria experiência de ser e não-ser.
- Referência:
- (1) LEÃO, Emmanuel Carneiro. "A filosofia grega hoje". In: Caderno de Letras, nº 18. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, Departamento de Letras Anglo-Germânicas, 2002, p. 21.
9
- Na ficha Mito,1, apontam-se as três construções do real: filosofia, teologia, ciência. Mas elas não estão separadas, pois a ciência fragmenta a construção do homem e do real numa série de disciplinas. E cada uma de acordo com o seu objeto e método, nos propõe um entendimento do mito: antropologia, etnografia (ou etnologia), psicologia, psiquiatria, psicanálise, história. E dentro de cada disciplina ainda há as correntes. Isso numa primeira instância pulveriza o entendimento do mito, afastando-nos do seu vigor manifestativo e construtivo. Por outro lado, afirmando-se o mito um núcleo impenetrável, só ocasiona uma possibilidade de abertura para o sentido do mito no que o mito é: manifestação originária do real. Pensadas não as interpretações mas este núcleo indecifrável, se abre para nós a essência do mito, que é, no fundo, a essência da linguagem ou do real como totalidade cósmica. O que seja isto é o que o mito nos leva a pensar. E aqui se dá a diferença entre o mito como conhecimento e o mito como uma experiência de pensamento mítica. O mito em seu núcleo duro é sempre uma experiência de pensamento e não a formulação de um conhecimento. Quando se pensa a arte essencialmente se chega à questão do mito como experiência de pensamento, ou seja, à experiência de pensamento do sagrado. É o que Platão, no Íon, fala sobre a inspiração dos poetas pelas Musas.
10
- No mito deve ser considerado fundamentalmente o rito. O mito nos advém no rito. Mas quando consideramos o rito, constatamos que ele não é um conceito, nem, evidentemente, uma representação. Por isso, o rito se constitui na essência de sua poética mítica. Não temos só poética quando o mito nos dá a ritualização da própria linguagem, como no mito de Hermes. Todo rito pressupõe uma poética, pois todo rito reúne momentos de música, poesia, dança, pintura, escultura... O rito reúne as linguagens poéticas no mito como linguagem. A poética do mito se dá na consideração da tensão entre mito e rito.
11
- "O mito tem a força da verdade, a manifestação do real. O mito como palavra coloca a linguagem como a manifestação do ser. Nesse sentido, a linguagem também é mito. Ela restitui a essência ao ser. É a manifestação pela qual o real eclode em sua essência. Em grego, mýthos originou-se do verbo mytheomai, que significa: desocultar pela palavra. Palavra essa, organizada na forma de discurso sagrado. Tem o sentido de palavra divina, através do canto poético aquecido como uma fonte referente ao sentido do ser e às formas divinas do mundo. Assim, dizemos que o mito aparece como o próprio real. O real a se doar, a eclodir como Linguagem" (1).
- Referência:
- (1) GROETAERS, Elenice. A poética da noite em Vinicius de Moraes. São Paulo: Scortecci, 2007, pp. 58-9.
12
- "Mýthos já diz o manifestar-se do real em sua essência originária, em ser o próprio extra-ordinário em seu vigor atuante, em sua concreticidade, pois o concreto é a vigência do vigente na pergunta que a questão nos põe. Todo mito é uma pergunta gerada pelas questões. Dialogar e interpretar os mitos é sempre experienciar como rito a resposta à pergunta que o mito sempre e permanentemente coloca" (1).
- Referência:
- (1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Permanência e atualidade da Poética". In: Revista Tempo Brasileiro, nº 171. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 11.
13
- "O mito, em seu vigor imperante, está presente, como não podia deixar de ser, em todos os momentos e acontecimentos do homem, Poesia que é" (1).
- Referência:
- (1) CASTRO, Manuel Antônio de. O acontecer poético - a história literária. Rio de Janeiro: Antares, 1982, p. 39.
14
- "O mito se dá como a instauração originária de mundo em vigor telúrico, como reunião de compreensão em que a plenitude do horizonte se abre à criação encerrando-se na tradição, em que cada corpo é acolhido dentro de um corpo da família, do grupo, um corpo social e sagrado que por sua vez é recolhido em sua totalidade, em cada um dos corpos de seus membros. Desta feita o mito, dispondo cada coisa em seu lugar, em que não são meras coisas, porquanto referenciadas no sentido, instaura mundo ao modo de uma corporeidade que acolhe corpos ao mesmo tempo que liberta diferentes corporeidades (1).
- Referência:
- (1) BRAGA, Diego. A terceira margem do mito: hermenêutica da corporeidade. In: Revista Terceira margem. Revista do Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ. Ano XIV, 22, jan.-jun, 2010, p. 55.
15
- "Gesto de mundo, o gesto que coloca mundo, que recolhe e produz, que cria recriando, o gesto próprio, concreto, em que não há a noção de um original que esteja sendo executado nem de um real externo ao próprio gesto que esteja sendo indicado – a este gesto de mundo que responde a um aceno telúrico chamamos mito" (1).
- Referência:
- (1) BRAGA, Diego. A terceira margem do mito: hermenêutica da corporeidade. In: Revista Terceira margem. Revista do Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ. Ano XIV, 22, jan.-jun, 2010, p. 61.
16
- Todo mito é uma narração de perguntas, de colocação de questões. Cabe a nós nos abrirmos para a escuta dessas questões e perguntas. Dar-lhe formas narrativas é transformá-las em obras de arte.
17
- O ser humano se desdobra em diversas faces, mas a razão tende a tudo querer abarcar. No mito isso não acontece e não há a separação dessas faces, que seriam:
- Conhecer
- Pensar ______________ RAZÃO
- Compreender
- Querer
- Desejar ______________ VONTADE
- Questionar
- Imaginar
- Sonhar________________ IMAGINAÇÃO
- Inventar
- Crer __________________FÉ
- Sentir
- Apaixonar ____________ AFETIVIDADE / EMOÇÃO
- Sensibilizar
- E em dois métodos:
- 1-Dedutivo-racional
- 2-Indutivo-experimental - observacional - estatístico
- Nenhum destes métodos dá conta do vigorar do mito, porque este é um caminhar no círculo poético de manifestação (rito) e velamento (mito). Essas divisões científicas ajudam, mas não dão conta da complexidade do que é o ser humano, porque ele se manifesta no horizonte do que é, ou seja, no pensar-se enquanto se pensa no sentido do Ser.
18
- Seria necessário pensar a referência/relação mito/escrita. Até onde a escrita abole o rito e deixa o mito entregue ao rito da escrita, gerando assim uma "perda" entre o rito do mito e o rito da escrita, que se refletiria na própria relação/referência linguagem/língua/narração. Sugerimos a leitura do ensaio "Teoria literária: representação e ética" (1) para contribuir com a discussão.
- Referência:
- (1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Teoria literária: representação e ética". Disponível em Travessia Poética.
- Ver também:
19
- "Provindo do mistério temporal da realidade, os mitos remetem para fontes inesgotáveis de inconsciência e consciência históricas. São criações da experiência humana com os movimentos de seu próprio princípio e os gestos de suas transformações. Pelo mito, a sobrevivência se recolhe à densidade do verbo, em que se concentra toda a autoridade da história, a força criadora da Linguagem. Para o Mito converge a diversidade essencial das experiências do homem com a realidade. Do mito corre hoje o sangue de ontem para um novo amanhã: possibilidades de vida e condições de herança para o advento de uma história sempre já vigente e sempre ainda por vir. Com o mito nos chega “o amor ainda não aprendido, a dor não conhecida”, sabor deste mistério insondável da realidade na vida-morte. Sem o Mito nem a música da história ressoa nas festas nem a dança da capoeira ginga nas celebrações dos projetos" (1).
- Referência:
- (1) LEÃO, Emmanuel Carneiro. Filosofia grega - uma introdução. Teresópolis: Daimon Editora, 2010, p. 43.
20
- "O mito inaugural é, assim, o vigor de todo vigente no espetáculo de sua vigência. Por isso, todo mito se torna um apelo que nos chega e nos atravessa com a força de um princípio de transformação" (1). Esse pricípio de tranformação é o que podemos denominar, segundo a linguagem em seu vigorar, verbal.
- (1) LEÃO, Emmanuel Carneiro. O esquecimento da memória. In: Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 153, abr.-jun., 2003, p. 145.
21
- A palavra mythos vem do verbo grego mytheomai e diz o advir da realidade à palavra, à voz. Do mesmo radical deste verbo se formou o verbo grego myein, que diz, silenciar. Temos em português a palavra mudo, o que não fala, originada desse radical. Eclodir na palavra quer dizer advir à linguagem. Mas devemos notar que o radical desses dois verbos se dá numa dobra originária: voz e mudez provêm do mesmo fundo: o silêncio. Portanto, os mitos nada mais são do que a eclosão da realidade nas múltiplas tonalidades e visualizações da linguagem. A ligação aqui das obras poéticas com os mitos é evidente. A questão das Musas está ligada à questão da linguagem.