Memória

De Dicionrio de Potica e Pensamento

Edição feita às 23h39min de 8 de janeiro de 2014 por Fábio (Discussão | contribs)

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Hoje começamos a saber que o ser humano co-participa com os demais seres de ecossistemas. Mas estes não dizem respeito apenas à cadeia vital. Tudo é mais complexo. Por isso o ser humano tem sido estudado em relação a três grandes sistemas: o orgânico-vital, o social, o psíquico. Contudo, algo mais fundamental articula estes três sistemas: a memória. Mas como ela perfaz e percorre os três, não se deixando esgotar, ela vai estar ligada ao ser. E por quê? Porque inclui o ético e o belo, que estão para além do conhecimento, princípio que estrutura os três sistemas. Por isso o código genético não pode ficar adstrito ao conhecimento, ou seja, o que é um sistema de signos para comunicar e manifestar conhecimentos. Ele tem um encontro marcado com a memória enquanto ser. É que o ser é mais radical enquanto memória, pois nesta se faz presente e dá unidade: o ético, o sentido de realização da vida. Como o conhecimento do ético não pode ser ensinado, só o conhecimento configurado numa moral, aquilo que dá sentido a todo agir é a memória enquanto sentido do ser. A moral é objeto de aprendizado. O ético é um processo de aprendizagem, fundado no sentido do ser. A memória do ser é o ético e o belo, ou seja, o poético.


- Manuel Antônio de Castro


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"Na vida humana e no curso da sua história operam muitas memórias: (a)uma memória individual [aquilo que constitui o próprio, o que foi doado a cada sendo] engramatica, que grava conteúdos de percepções;(b)uma memória coletiva que aciona possibilidades comunitárias e convoca experiências de participação; (c)uma memória hístórica, monumental, que celebra a continuidade das transformações e as consagra para o futuro" (1).


Referência:
(1) LEÃO, Emmanuel Carneiro. O esquecimento da memória. In: Revista Tempo Brasileiro, 153: 143/147, abr.-jun.,2002.
Comentário: É um pequeno ensaio de quatro páginas e meia, mas que se torna uma matriz de muitos desdobramentos no que diz respeito ao ser humano e sua essência. Além dessas três memórias, há aquela que se torna o originário de todas elas: a memória ontológica. Diz de uma maneira perfeita a questão em que se manifesta todo ser humano enquanto entre-ser: há o esquecimento positivo e o esquecimento negativo. As duas facetas dizem respeito à memória como mecanismo de reprodução do lembrado e ao irrumper do novo pela deposição do passado passado. É neste esquecimento que se abre a possibilidade da memória inaugural, a memória ontológica. Que o leitor adentre este pequeno e denso ensaio é o desafio para repensar muita coisa. Nas três memórias dadas e em que nos sentimos seguros, comparece a conjuntura como horizonte em que todos nós nos surpeendemos vivendo em múltiplas facetas. Mas a dinâmica da conjuntura só de fato se faz presente quando ela se vê projetada e renovada em novas dimensões pelo vigorar da memória ontológica. É a memória poética (Manuel Antônio de Castro).


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"Esta Deusa, cujo ser (=nascimento-natureza) explicita o Ser-fundamento da Terra-Mãe e do Céu luminoso e fecundador, não é uma Memória individual que deva conservar (e servir a) vicissitudes e singularidades factuais restritas à história de um indivíduo, - e, sim, uma Memória Cosmogônica, é uma divindade cujo ser é dado por esse mesmo mo(vi)mento que dá ordem ao Mundo (o momentum cosmogônico)" (1).


Referência:
(1) TORRANO, Jaa. "O mundo como função de musas". In: HESÍODO. Teogonia. São Paulo: Iluminuras, 1992, p. 81.


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Segundo os dicionários correntes, memória é:


1º. Conservação de sensações;
2º. Reminiscência;
3º. Faculdade de conservar e lembrar estados de consciência passados, de reter ideias.


O dicionário lexical-semântico se baseia na lógica dos conceitos e não deixa o vigor das palavras serem o que são: manifestação da realidade. Só manifestando, a palavra é verdade e não mera representação conceitual, significantes e significados não da realidade, mas sobre a realidade. Memória em seu vigor de palavra remonta à Mitologia. Nesta, Memória é a mãe de todas as artes. É pelo vigor da Memória (mãe) que podemos articular e manifestar o memorável. Memorável é o que permanece no fluxo das mudanças fugidias e passageiras. Por isso, memória e tempo unitário são um só, ou seja, o tempo tridimensional (passado, presente e futuro) é ontologicamente unitário como memória. Nessa unidade não há uniformidade conceitual, mas há identidade enquanto diferença, ou seja, permanência e mudança. Isto é a memória.


- Manuel Antônio de Castro


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"É, em última instância, pela memória, que o ser humano se configura como um ser passível de constituir mundo, ou melhor, mundos, na medida em que é pela memória que se estabelece a possibilidade da vigência da unidade. A memória é um modo privilegiado de constituição da unidade e por isso, um modo privilegiado de consolidação de toda a possibilidade de relacionamento entre o que foi o que é e o que será. Desse modo, é pela memória que o caos pode se converter em cosmos" (1).


Referência:
(1) JARDIM, Antonio. Música: vigência do pensar poético. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p. 124.


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"De certa forma, a memória constitui a possibilidade enquanto possibilidade. E esta assim instituída se apresenta tanto como possibilidade retrospectiva quanto como possibilidade prospectiva. As temporalidades que habitamos são, dessa maneira, diretamente tributárias da memória, pois é com ela e a partir dela que se revelam, velam e se desvelam" (1).


Referência:
(1) JARDIM, Antonio. Música: vigência do pensar poético. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p. 124.

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"A palavra memória provém do grego mnéme que diz, mais imediatamente, ação de se lembrar, o lembrar ele mesmo, aquilo que permanece no espírito, documentos, arquivos, preceito, prescrição. Se se decompusesse mnéme em mne-, que diz, em última instância, unidade, e -me, que pode dizer, se derivado do indo-europeu *med, governar, pensar, sonhar ou medir, teríamos que memória diria governar, pensar ou medir a unidade. Na sua forma alongada, já no grego, men diz meditar, refletir, inventar, mas também, velar. A partir daí pode-se entender memória como a instância de inventar, meditar, refletir e velar, no sentido de cuidar, a unidade" (1).


Referência:
(1) JARDIM, Antonio. Música: vigência do pensar poético. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p. 126.


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"É nessa medida que a memória é por excelência um constituidor de mundo. Ela é capaz de mundanizar e mundaniza, precisamente, na medida em que é possibilidade de transcendência de uma imersão completa no âmbito da natureza. É pela memória que se configura a possibilidade do estabelecimento da cultura. É colhendo e recolhendo que se estabelece a possibilidade da vigência do habitar" (1).


Referência:
(1) JARDIM, Antonio. Música: vigência do pensar poético. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p. 128.


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"Memória é a condição de possibilidade do estabelecimento de todo e qualquer complexo temporal-espacial como unidade. A memória, tal como a música, é a unidade dos invisíveis. Quer dizer: é pela memória que se pode estabelecer o nexo do que é, mas que ainda, ou já, não existe. A memória vela, medita, cuida, a despeito da 'muita névoa', da unidade. A memória é o cuidado, o pensar da unidade" (1).


Referência:
(1) JARDIM, Antonio. Música: vigência do pensar poético. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p. 156.


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"Na memória, tal como na música, se instala sempre a dinâmica de som e silêncio. Memória é fazer vibrar a presença do que está aparentemente ausente, é fazer aparecer o que é o que tem vigência como ser, tem sentido como ser. Desse modo, se poderia entender memória como pensar, tanto no sentido de propiciar, dar ensejo à reflexão, quanto no sentido de colocar um penso, pôr um curativo, curar" (1).


Referência:
(1) JARDIM, Antonio. Música: vigência do pensar poético. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p. 157.


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A questão da relação tempo-memória se percebe bem na tensão presente/ausente: como pode alguém estar ausente e presente ao mesmo tempo e igualmente presente e ausente? Ora, este reunir de ausente/presente e presente/ausente é o logos. Interessante que aí se faz presente o ser como presença e ausência. É o entre-ser em que o homem se apropria do que lhe é próprio. O entre-ser é a vigência da memória no homem.


- Manuel Antônio de Castro


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"A memória é a concentração do pensamento" (1).


Referência:
(1) HEIDEGGER, Martin. O que quer dizer pensar? In: -----------. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 111.


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Na memória comparecem os ancestrais, não como algo que se reporta ao passado ou às origens. Deixar-se envolver pela memória é deixar eclodir dentro de cada um as questões originárias, as questões da memória, porque a memória não foi nem jamais será a mera lembrança do que passou e de que alguém se lembra. A língua e linguagem gregas sempre experienciaram a memória como o cuidado da unidade. É isso o que diz o radical da palavra grega para memória: mnemosine. Ela é, por isso, a [[arché]], isto é, o princípio imemorial, no qual e pelo qual se dá o que foi, é e será.


- Manuel Antônio de Castro

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Vida é unidade, que é tempo, que é o que normalmente denominamos memória. Seria impossível perguntar pela vida depois da morte se já não fôssemos memória. Sabemos que nossa vida, no presente, remete para um passado e para um futuro. Se não houvesse memória seria impossível haver lembrança do passado e a possibilidade de futuro. Só há lembrança do passado porque a memória não é só o passado, mas a unidade que nos faz experienciar o tempo como unidade acontecendo, como o ser estando sendo. Será muito limitado restringir a memória a um processo de consciência, seja consciente, seja inconsciente. A memória radica em tudo, porque a realidade é memória. Em cada ente real lá está a memória do universo. Em cada vivente lá está a memória que é a vida. Morte e vida não têm medida de grandeza nem valor quantitativo.


- Manuel Antônio de Castro

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Sabemos que nossa vida, no presente, remete para um passado e para um futuro. Se não houvesse memória seria impossível haver lembrança do passado e a possibilidade de futuro. Só há lembrança do passado porque a memória não é só o passado, mas a unidade que nos faz experienciar o tempo como unidade acontecendo, como o ser estando sendo. Será muito limitado restringir a memória a um processo de consciência, seja consciente, seja inconsciente. A memória radica em tudo, porque a realidade é memória.


- Manuel Antônio de Castro.

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Ser é memória. O sentido é a memória do ser. Sentido é o caminhar de todas as caminhadas enquanto unidade, memória. E memória é a unidade do que foi, é e será. Porém, a unidade do tempo tripartido é a quarta dimensão do tempo: a linguagem ou mundo. É a unidade do “tudo um” (hen panta) da sentença 50 de Heráclito (1). A memória, enquanto sentido do Ser, é a unidade da pro-posta como “o a ser pensado” na sentença 84 de Heráclito: “Transformando-se, repousa” (2).


- Manuel Antônio de Castro.


Referência:
(1) PENSADORES ORIGINÁRIOS. Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 71.
(2) PENSADORES ORIGINÁRIOS. Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 81.


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A memória é o ponto de ligação entre o singular que cada um é e o sentido histórico-social. Mais do que ponto de ligação, é a fonte e a origem, pois a Memória é o que foi, é e será. Do ponto de vista atual, podemos dizer, para encaminhar a problemática do que somos, que existe uma memória natural e uma memória cultural. Mas entre as duas não há oposição. Hoje se lê a memória natural como código genético, o que é uma denominação imprópria, pois só pode haver memória natural porque já há linguagem. O conceito de código não dá conta do que é linguagem. Em vista disso a memória cultural é a memória natural manifestada como linguagem, não como linguagem cultural, mas como linguagem simplesmente, sem atributos, ou seja, a manifestação da phýsis como lógos. A melhor compreensão de memória natural e memória cultural, uma real distinção, mas uma falsa dicotomia, está na concepção mítica de génos. Génos, destino, linguagem, tempo e história estão intimamente ligados e o entendimento de uma dessas questões pressupõe o entendimento das outras. Mas quando se trata de questão, ela já se move sempre no sentido do ser. Tendo em vista isso, falar da memória é falar da memória do ser.


- Manuel Antônio de Castro


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“Memória acontece enquanto presença no tempo, cujo corpo é a unidade que se arremete profundamente no caminho da tradição” (1).


Referência:
(1) PESSANHA, Fábio Santana. A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2013, pp. 66-7.