Entre

De Dicionrio de Potica e Pensamento

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:O entre, ao nos projetar nos interstícios da [[liminaridade]], se desdobra em duas facetas. A primeira é a tensão. Esta indica a questão da harmonia como tensão de opostos, mas onde estes opostos de alguma maneira se manifestam, ora se dando um, ora se dando outro. Enquanto tensão de opostos na manifestação do "entre" como harmonia, é que podemos falar de complementaridade. Por exemplo, dia e noite, onda e partícula, mito e rito, masculino e feminino, apolínio e dionisíaco etc. A segunda faceta é a [[disputa]]. Esta já indica o "entre" na sua radicalidade, onde não há [[complementaridade]], porque esta sempre se refere à ordem do manifestável. Na disputa há muito mais do que tensão. Nela comparece o próprio abismo. Seu exemplo fundamental é vida e morte. Não dá para saber o que é [[morte]]. Ninguém voltou para dizer a sua experienciação. Nela, não há complementaridade nenhuma, pois esta, em-si, se funda na negação. Já a [[disputa]] funda a [[tensão]], mas não o contrário, porque tal fundar é abismal. É a morte. Outro exemplo é mundo e terra. Outro é nada e ente. Outro é silêncio e voz. Enfim, é o [[vazio]] e a [[teia]]. Por mais que a teia se expande tanto mais o vazio a concerne, cerca, funda e se retrai. O pensamento oriental fala de dezoito modos do vazio. Há, portanto, aí uma disputa e não simplesmente uma tensão. Na disputa, o próprio "entre" se vê engolfado pelo nada. É o silêncio misterioso de Édipo no final da tragédia "Édipo em Colona". Para entender o engolfar o "entre", pelo nada, é necessário ter em mente que o "entre" é a própria presença do nada em seu mistério. No fragmento 123: ''phýsis krýptesthai phileî'', de Heráclito, a ''phýsis'' manifestada pode ser onda e/ou partícula, mas o ''krýptesthai'', não. Este é abismal, o silêncio que funda e possibilita toda voz, toda [[presença]], toda manifestação.
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:O entre, ao nos projetar nos interstícios da [[liminaridade]], se desdobra em duas facetas. A primeira é a tensão. Esta indica a questão da harmonia como tensão de opostos, mas onde estes opostos de alguma maneira se manifestam, ora se dando um, ora se dando outro. Enquanto tensão de opostos na manifestação do "entre" como harmonia, é que podemos falar de complementaridade. Por exemplo, dia e noite, onda e partícula, mito e rito, masculino e feminino, apolíneo e dionisíaco etc. A segunda faceta é a [[disputa]]. Esta já indica o "entre" na sua radicalidade, onde não há [[complementaridade]], porque esta sempre se refere à ordem do manifestável. Na disputa há muito mais do que tensão. Nela comparece o próprio abismo. Seu exemplo fundamental é vida e morte. Não dá para saber o que é [[morte]]. Ninguém voltou para dizer a sua experienciação. Nela, não há complementaridade nenhuma, pois esta, em-si, se funda na negação. Já a [[disputa]] funda a [[tensão]], mas não o contrário, porque tal fundar é abismal. É a morte. Outro exemplo é mundo e terra. Outro é nada e ente. Outro é silêncio e voz. Enfim, é o [[vazio]] e a [[teia]]. Por mais que a teia se expande tanto mais o vazio a concerne, cerca, funda e se retrai. O pensamento oriental fala de dezoito modos do vazio. Há, portanto, aí uma disputa e não simplesmente uma tensão. Na disputa, o próprio "entre" se vê engolfado pelo nada. É o silêncio misterioso de Édipo no final da tragédia "Édipo em Colona". Para entender o engolfar o "entre", pelo nada, é necessário ter em mente que o "entre" é a própria presença do nada em seu mistério. No fragmento 123: ''phýsis krýptesthai phileî'', de Heráclito, a ''phýsis'' manifestada pode ser onda e/ou partícula, mas o ''krýptesthai'', não. Este é abismal, o silêncio que funda e possibilita toda voz, toda [[presença]], toda manifestação.
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:"Somente no âmbito do esforço é que o homem se esforça por "méritos". Somente assim ele consegue tantos méritos. Mas justamente nesse esforço e por esse esforço concede-se ao homem levantar os olhos para os celestiais. Não obstante esse levantar os olhos percorra toda direção acima rumo ao céu, permanece no abaixo da terra. Esse levantar os olhos mede o entre céu e terra. Esse entre possui uma [[medida]] comedida e ajustada ao habitar do homem. Chamaremos de [[dimensão]] a medida comedida, aberta através do entre céu e terra" (1).
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:"Somente no âmbito do esforço é que o homem se esforça por 'méritos'. Somente assim ele consegue tantos méritos. Mas justamente nesse esforço e por esse esforço concede-se ao [[homem]] levantar os olhos para os celestiais. Não obstante esse levantar os olhos percorra toda direção acima rumo ao [[céu]], permanece no abaixo da [[terra]]. Esse levantar os olhos mede o entre céu e terra. Esse entre possui uma [[medida]] comedida e ajustada ao habitar do homem. Chamaremos de [[dimensão]] a medida comedida, aberta através do entre céu e terra" (1).
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:A questão da medida surge naturalmente ao homem pelo simples fato de que ele se experiencia como homem na medida da sua liminaridade. Mas se há, e há, liminaridade, qual a sua medida? Na realidade, a questão colocada diz do próprio do ser humano. E perguntar pela medida da liminaridade, ou seja, do próprio do ser humano, é perguntar pelo "entre". Este, como medida, radica na dupla tensão de distância e proximidade e de humanos e divinos e de Céu e Terra. É nesse sentido de tensão que o "entre" é medida. O que então é medida? Reflete-se a respeito profundamente no ensaio referido.
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:A questão da medida surge naturalmente ao homem pelo simples fato de que ele se experiencia como homem na medida da sua [[liminaridade]]. Mas se há - e há - liminaridade, qual a sua medida? Na realidade, a questão colocada diz do [[próprio]] do ser humano. E perguntar pela medida da liminaridade, ou seja, do próprio do ser humano, é perguntar pelo "entre". Este, como medida, radica na dupla tensão de distância e proximidade e de humanos e divinos e de Céu e Terra. É nesse sentido de tensão que o entre é [[medida]].  
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:- [[Manuel Antônio de Castro]]
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:(1) HEIDEGGER, Martin. "...poeticamente o homem habita...". Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback.  In: ''Ensaios e conferências''. Petropólis: Vozes, 2002, pp. 165-181 (especialmente no § 15 e seguintes. Sobre o lugar central do "entre" ver p. 172, § 1).
 
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:O entre preside a mais radical dimensão do real, isto é, do ser e não-ser. Certamente, ele está claro no fragmento 123 de Heráclito: ''Phýsis kryptestai philei'' - A ''phýsis'' ama velar-se, em que o "entre" corresponde ao ''philei'', pois significa: ama, ou seja, o apropriar-se do que é próprio. O [[amor]] é o vigor do "entre".
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:O entre preside a mais radical dimensão do real, isto é, do ser e não-ser. Certamente, ele está claro no fragmento 123 de Heráclito: ''Phýsis krýptesthai phileî'' - A ''phýsis'' ama velar-se, em que o entre corresponde ao ''phileî'', pois significa: ama, ou seja, o apropriar-se do que é próprio. O [[amor]] é o vigor do entre.
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:- [[Manuel Antônio de Castro]]
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:No desenvolvimento da complexidade do entre é necessário pensar a sua referência à mediação e à [[medida]]. Para isso é necessário relacionar o entre ao caminho, ao método, na medida em que como entre, método se torna "mediação" e "medida", mas, claro, onde a "medida" não vem do método como pretende a metodologia, mas do ser/real que, como ''poíesis'' (o vigor do poético) se faz e dá como medida de verdade e não-verdade do ente. Conferir abaixo.
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:No desenvolvimento da complexidade do entre é necessário pensar a sua [[referência]] à mediação e à [[medida]]. Para isso é necessário relacionar o entre ao [[caminho]], ao [[método]], na medida em que como entre, método se torna mediação e medida, mas, é claro, onde a medida não vem do método como pretende a metodologia, mas do ser/[[real]] que, como ''[[poíesis]]'' (o vigor do poético) se faz e dá como medida de verdade e não-verdade do ente.
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:- [[Manuel Antônio de Castro]]
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:(1) HEIDEGGER, Martin. "...poeticamente o homem habita...". In: ____. ''Ensaios e conferências''. Petróplis: Vozes, 2002.
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:"Entre" pressupõe sempre [[duplicidade]] e [[ambiguidade]], pois essa palavra diz exatamente da radicalidade ser e ente. "A linguagem é, portanto, o que prevalece e carrega a referência do homem com a duplicidade ENTRE ser e ente. A linguagem decide a [[referência]] hermenêutica" (1).  
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:Entre pressupõe sempre [[duplicidade]] e [[ambiguidade]], pois essa palavra diz exatamente da radicalidade [[ser]] e [[ente]]. "A linguagem é, portanto, o que prevalece e carrega a referência do homem com a duplicidade entre ser e ente. A linguagem decide a [[referência]] hermenêutica" (1).  
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:- [[Manuel Antônio de Castro]]
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:(1) HEIDEGGER, Martin. "De uma conversa sobre a linguagem entre um japonês e um pensador". In: ____. ''A caminho da linguagem''. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 97.
:(1) HEIDEGGER, Martin. "De uma conversa sobre a linguagem entre um japonês e um pensador". In: ____. ''A caminho da linguagem''. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 97.
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:"Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um [[intervalo]] de espaço, existe um sentir que é entre o sentir - nos [[interstício|interstícios]] da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio" (1).
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:"Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha [[busca]] cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o [[número]] um e o número dois, de como vi a linha de [[mistério]] e [[fogo]], e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de [[música]] existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um [[intervalo]] de espaço, existe um sentir que é entre o sentir - nos [[interstício|interstícios]] da [[matéria]] primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de [[silêncio]]" (1).
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: (1) LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. 3.e. Rio de Janeiro: Sabiá, 1972, p. 117.
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: (1) LISPECTOR, Clarice. ''A paixão segundo G.H.''. 3. ed. Rio de Janeiro: Sabiá, 1972, p. 117.
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:"O entre é a vida acontecendo e apropriando-se do que lhe é próprio, constituindo-se no originário de toda dis-posição" (1).
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:"O entre é a [[vida]] acontecendo e apropriando-se do que lhe é próprio, constituindo-se no [[originário]] de toda dis-posição" (1).
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:(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Interdisciplinaridade poética: o 'entre' ". In: ''Revista Tempo Brasileiro'', Rio de Janeiro, 164: 7/36, jan.-mar., 2006, p. 11.
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:(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Interdisciplinaridade poética: o "entre" ". In: Revista ''Tempo Brasileiro'', Rio de Janeiro, 164: 7/36, jan.-mar., 2006, p. 11.
 
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:"“Entre” provém do pré-verbo e da preposição latina “in”. Em primeira instância, “in” tem os sentidos de “em”, “dentro” e “sobre”, tanto do ponto de vista espacial como temporal. Ele, poeticamente, diz, por isso mesmo, “lugar”. E assim tanto indica movimento como estado físico ou moral" (1).
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:"Entre provém do pré-verbo e da preposição latina ''in''. Em primeira instância, ''in'' tem os sentidos de em, dentro e sobre, tanto do ponto de vista espacial como temporal. Ele, poeticamente, diz, por isso mesmo, [[lugar]]. E assim tanto indica movimento como estado físico ou moral" (1).
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:(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Interdisciplinaridade poética: o 'entre'". In: ''Revista Tempo Brasileiro'', Rio de Janeiro, 164: 7/36, jan.-mar., 2006, p. 17.
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:(1) CASTRO, Manuel Antônio de. Interdisciplinaridade poética: o "entre". In: Revista ''Tempo Brasileiro'', Rio de Janeiro, 164: 7/36, jan.-mar., 2006, p. 17.
 
== 10 ==
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:"O “entre” é a abertura constitutiva e originária do ser-humano. Essa abertura se dá na metafísica, pois só o ser humano é radicalmente metafísico, no sentido de ser no ser humano que a physis se dá como entre em sua ambiguidade radical. Na metafísica, a physis se dá originariamente como esse enigmático “entre” (metá), horizonte poético-ontológico de todo ser humano" (1).
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:"O entre é a [[abertura]] constitutiva e originária do ser-humano. Essa abertura se dá na [[metafísica]], pois só o ser humano é radicalmente metafísico, no sentido de ser no ser humano que a ''[[phýsis]]'' se dá como entre em sua [[ambiguidade]] radical. Na metafísica, a ''phýsis'' se dá originariamente como esse enigmático entre (''metá''), [[horizonte]] poético-ontológico de todo ser humano" (1).
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:(1)  CASTRO, Manuel Antônio de. Interdisciplinaridade poética: o “entre”. In: Revista ''Tempo Brasileiro'', Rio de Janeiro, 164: 7/36, jan.-mar., 2006, p.19.
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:(1)  CASTRO, Manuel Antônio de. "Interdisciplinaridade poética: o 'entre'". In: ''Revista Tempo Brasileiro'', Rio de Janeiro, 164: 7/36, jan.-mar., 2006, p.19.
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:"O entre é o próprio núcleo de todo agir humano, é o horizonte que faz do ser humano homem humano" (1).
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:"O entre é o próprio núcleo de todo [[agir]] humano, é o horizonte que faz do ser humano homem humano" (1).
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:(1)  CASTRO, Manuel Antônio de. Interdisciplinaridade poética: o “entre”. In: Revista ''Tempo Brasileiro'', Rio de Janeiro, 164: 7/36, jan.-mar., 2006, p.20.
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:(1)  CASTRO, Manuel Antônio de. "Interdisciplinaridade poética: o 'entre'". In: ''Revista Tempo Brasileiro'', Rio de Janeiro, 164: 7/36, jan.-mar., 2006, p.20.
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:"Não obstante esse levantar os olhos percorra toda direção acima rumo ao Céu, permanece no abaixo da Terra. Esse levantar os olhos mede o entre Céu e Terra. Esse entre possui uma medida comedida e ajustada ao habitar do homem" (1).
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:"Não obstante esse levantar os olhos percorra toda direção acima rumo ao [[céu]], permanece no abaixo da [[terra]]. Esse levantar os olhos mede o entre céu e terra. Esse entre possui uma [[medida]] comedida e ajustada ao habitar do homem" (1).
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:O "entre" é a própria essência do ser humano, pois aí se decide o que ele é no como é, pois aí se dá a sua liminaridade. Esse "entre" se torna a essência essencial do ser humano, pois ele está "entre" Céu e Terra. Eis o que diz Heidegger: "Pois o homem habita em medindo o 'sobre esta Terra' e o 'sob o Céu'. Esse "sobre" e esse "sob" se pertencem mutuamente. Esse seu imbricamento é uma medição que o homem está sempre a percorrer, sobretudo porque o homem é como o que pertence à Terra" (2).  
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:O entre é a própria [[essência]] do ser humano, pois aí se decide o que ele é no como é, pois aí se dá a sua liminaridade. Esse entre se torna a essência essencial do ser humano, pois ele está entre céu e terra, "pois o homem habita em medindo o 'sobre esta terra' e o 'sob o céu'. Esse sobre e esse sob se [[pertencer|pertencem]] mutuamente. Esse seu imbricamento é uma medição que o homem está sempre a percorrer, sobretudo porque o homem é como o que pertence à terra" (2).  
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:(1) HEIDEGGER, Martin. ''Ensaios e conferências''. Petrópolis: Vozes, 2002, 172, § 17.  
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:(1) HEIDEGGER, Martin. "... poeticamente o homem habita... ". In: ''Ensaios e conferências''. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 172.
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:(2) Idem, p. 175, § 26.
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:(2) Idem, p. 175.
== 13 ==
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:O estudo do "entre" é fundamental, sobretudo para "ver" (a arte não só trabalha com o ver mas também com o ouvir e com o movimento enquanto dança) o alcance da questão ocidental por excelência: a epistemologia. Ele aparece na situação fundamental, que consiste em "estudar a relação ENTRE um objeto e o observador". Como podemos "ver" as teorias e estudos se limitam a determinar essa relação (e há também a referência ora optando pelo objeto ora pelo observador. Nunca se pensa o "entre"). Este "entre" jamais fica reduzido à "percepção". E é nesta que se concentram os estudos. Contudo, é esse "entre" que irá determinar o alcance dos "métodos" e, consequentemente, o do conhecimento. Trata-se, em última instância, da complexa questão da DIANOIA, da ENTRE-PERCEPÇÃO. Cf. Heidegger, Martin. De l' essence de la verité. Paris, Gallimard, 2001.
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:O estudo do entre é fundamental, sobretudo para [[ver]] - a [[arte]] não só trabalha com o ver mas também com o ouvir e com o movimento enquanto [[dança]] - o alcance da questão ocidental por excelência: a [[epistemologia]]. Ele aparece na situação fundamental, que consiste em "estudar a [[relação]] entre um objeto e o observador". Como podemos ver, as [[teoria|teorias]] e estudos se limitam a determinar essa relação. Há também a referência ora optando pelo [[objeto]] ora pelo observador, contudo nunca se pensa o entre. Este entre jamais fica reduzido à [[percepção]]. E é nesta que se concentram os estudos. Contudo, é esse entre que irá determinar o alcance dos [[métodos]] e, consequentemente, o do conhecimento. Trata-se, em última instância, da questão da ''[[diánoia]]'', da entre-percepção (1).  
:- [[Manuel Antônio de Castro]]
:- [[Manuel Antônio de Castro]]
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:Referência:
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:(1) Cf. HEIDEGGER, Martin. ''De l' essence de la vérité''. Paris: Gallimard, 2001.

Edição de 14h35min de 18 de Agosto de 2009

1

O entre, ao nos projetar nos interstícios da liminaridade, se desdobra em duas facetas. A primeira é a tensão. Esta indica a questão da harmonia como tensão de opostos, mas onde estes opostos de alguma maneira se manifestam, ora se dando um, ora se dando outro. Enquanto tensão de opostos na manifestação do "entre" como harmonia, é que podemos falar de complementaridade. Por exemplo, dia e noite, onda e partícula, mito e rito, masculino e feminino, apolíneo e dionisíaco etc. A segunda faceta é a disputa. Esta já indica o "entre" na sua radicalidade, onde não há complementaridade, porque esta sempre se refere à ordem do manifestável. Na disputa há muito mais do que tensão. Nela comparece o próprio abismo. Seu exemplo fundamental é vida e morte. Não dá para saber o que é morte. Ninguém voltou para dizer a sua experienciação. Nela, não há complementaridade nenhuma, pois esta, em-si, se funda na negação. Já a disputa funda a tensão, mas não o contrário, porque tal fundar é abismal. É a morte. Outro exemplo é mundo e terra. Outro é nada e ente. Outro é silêncio e voz. Enfim, é o vazio e a teia. Por mais que a teia se expande tanto mais o vazio a concerne, cerca, funda e se retrai. O pensamento oriental fala de dezoito modos do vazio. Há, portanto, aí uma disputa e não simplesmente uma tensão. Na disputa, o próprio "entre" se vê engolfado pelo nada. É o silêncio misterioso de Édipo no final da tragédia "Édipo em Colona". Para entender o engolfar o "entre", pelo nada, é necessário ter em mente que o "entre" é a própria presença do nada em seu mistério. No fragmento 123: phýsis krýptesthai phileî, de Heráclito, a phýsis manifestada pode ser onda e/ou partícula, mas o krýptesthai, não. Este é abismal, o silêncio que funda e possibilita toda voz, toda presença, toda manifestação.


- Manuel Antônio de Castro


Ver também:

2

"Somente no âmbito do esforço é que o homem se esforça por 'méritos'. Somente assim ele consegue tantos méritos. Mas justamente nesse esforço e por esse esforço concede-se ao homem levantar os olhos para os celestiais. Não obstante esse levantar os olhos percorra toda direção acima rumo ao céu, permanece no abaixo da terra. Esse levantar os olhos mede o entre céu e terra. Esse entre possui uma medida comedida e ajustada ao habitar do homem. Chamaremos de dimensão a medida comedida, aberta através do entre céu e terra" (1).


Referência:
(1) HEIDEGGER, Martin. "... poeticamente o homem habita...". In: Ensaios e conferências. Petrópolis, Vozes, 2002, p. 172.


Ver também:


3

A questão da medida surge naturalmente ao homem pelo simples fato de que ele se experiencia como homem na medida da sua liminaridade. Mas se há - e há - liminaridade, qual a sua medida? Na realidade, a questão colocada diz do próprio do ser humano. E perguntar pela medida da liminaridade, ou seja, do próprio do ser humano, é perguntar pelo "entre". Este, como medida, radica na dupla tensão de distância e proximidade e de humanos e divinos e de Céu e Terra. É nesse sentido de tensão que o entre é medida.


- Manuel Antônio de Castro


4

O entre preside a mais radical dimensão do real, isto é, do ser e não-ser. Certamente, ele está claro no fragmento 123 de Heráclito: Phýsis krýptesthai phileî - A phýsis ama velar-se, em que o entre corresponde ao phileî, pois significa: ama, ou seja, o apropriar-se do que é próprio. O amor é o vigor do entre.


- Manuel Antônio de Castro


5

No desenvolvimento da complexidade do entre é necessário pensar a sua referência à mediação e à medida. Para isso é necessário relacionar o entre ao caminho, ao método, na medida em que como entre, método se torna mediação e medida, mas, é claro, onde a medida não vem do método como pretende a metodologia, mas do ser/real que, como poíesis (o vigor do poético) se faz e dá como medida de verdade e não-verdade do ente.


- Manuel Antônio de Castro


6

Entre pressupõe sempre duplicidade e ambiguidade, pois essa palavra diz exatamente da radicalidade ser e ente. "A linguagem é, portanto, o que prevalece e carrega a referência do homem com a duplicidade entre ser e ente. A linguagem decide a referência hermenêutica" (1).


- Manuel Antônio de Castro


Referência:
(1) HEIDEGGER, Martin. "De uma conversa sobre a linguagem entre um japonês e um pensador". In: ____. A caminho da linguagem. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 97.


7

"Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir - nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio" (1).


Referência:
(1) LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H.. 3. ed. Rio de Janeiro: Sabiá, 1972, p. 117.


8

"O entre é a vida acontecendo e apropriando-se do que lhe é próprio, constituindo-se no originário de toda dis-posição" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Interdisciplinaridade poética: o 'entre' ". In: Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 164: 7/36, jan.-mar., 2006, p. 11.


9

"Entre provém do pré-verbo e da preposição latina in. Em primeira instância, in tem os sentidos de em, dentro e sobre, tanto do ponto de vista espacial como temporal. Ele, poeticamente, diz, por isso mesmo, lugar. E assim tanto indica movimento como estado físico ou moral" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Interdisciplinaridade poética: o 'entre'". In: Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 164: 7/36, jan.-mar., 2006, p. 17.


10

"O entre é a abertura constitutiva e originária do ser-humano. Essa abertura se dá na metafísica, pois só o ser humano é radicalmente metafísico, no sentido de ser no ser humano que a phýsis se dá como entre em sua ambiguidade radical. Na metafísica, a phýsis se dá originariamente como esse enigmático entre (metá), horizonte poético-ontológico de todo ser humano" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Interdisciplinaridade poética: o 'entre'". In: Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 164: 7/36, jan.-mar., 2006, p.19.


11

"O entre é o próprio núcleo de todo agir humano, é o horizonte que faz do ser humano homem humano" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Interdisciplinaridade poética: o 'entre'". In: Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 164: 7/36, jan.-mar., 2006, p.20.


12

"Não obstante esse levantar os olhos percorra toda direção acima rumo ao céu, permanece no abaixo da terra. Esse levantar os olhos mede o entre céu e terra. Esse entre possui uma medida comedida e ajustada ao habitar do homem" (1).
O entre é a própria essência do ser humano, pois aí se decide o que ele é no como é, pois aí se dá a sua liminaridade. Esse entre se torna a essência essencial do ser humano, pois ele está entre céu e terra, "pois o homem habita em medindo o 'sobre esta terra' e o 'sob o céu'. Esse sobre e esse sob se pertencem mutuamente. Esse seu imbricamento é uma medição que o homem está sempre a percorrer, sobretudo porque o homem é como o que pertence à terra" (2).


- Manuel Antônio de Castro


Referência:
(1) HEIDEGGER, Martin. "... poeticamente o homem habita... ". In: Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 172.
(2) Idem, p. 175.


13

O estudo do entre é fundamental, sobretudo para ver - a arte não só trabalha com o ver mas também com o ouvir e com o movimento enquanto dança - o alcance da questão ocidental por excelência: a epistemologia. Ele aparece na situação fundamental, que consiste em "estudar a relação entre um objeto e o observador". Como podemos ver, as teorias e estudos se limitam a determinar essa relação. Há também a referência ora optando pelo objeto ora pelo observador, contudo nunca se pensa o entre. Este entre jamais fica reduzido à percepção. E é nesta que se concentram os estudos. Contudo, é esse entre que irá determinar o alcance dos métodos e, consequentemente, o do conhecimento. Trata-se, em última instância, da questão da diánoia, da entre-percepção (1).


- Manuel Antônio de Castro


Referência:
(1) Cf. HEIDEGGER, Martin. De l' essence de la vérité. Paris: Gallimard, 2001.
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