Narrar

De Dicionrio de Potica e Pensamento

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:Narrar poético não é o tomar a [[palavra]] e emitir um [[discurso]]. Narrar poético é o ser tomado e possuído pela linguagem da palavra e do discurso. Um tal narrar só é narração da língua na medida em que nela se manifesta a [[escuta]] da linguagem. No narrar poético o saber da narração se torna a manifestação originária da [[linguagem]]. É que a linguagem é o mais denso e concentrado modo de ser da realidade. Portanto, ser possuído pela linguagem (''lógos'')é tornar linguagem as possibilidades da realidade. Tais possibilidades nenhuma forma exaure. Porque na obra poética vigoram as possibilidades do narrar poético, só a leitura que se torna diálogo se abre para o operar poético da obra. Por isso, do leitor a obra espera a escuta do narrar poético.
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:Narrar poético não é o tomar a [[palavra]] e emitir um [[discurso]]. Narrar poético é o ser tomado e possuído pela linguagem da palavra e do discurso. Um tal narrar só é narração da língua na medida em que nela se manifesta a [[escuta]] da linguagem. No narrar poético, o saber da narração se torna a manifestação originária da [[linguagem]]. É que a linguagem é o mais denso e concentrado modo de ser da realidade. Portanto, ser possuído pela linguagem (''lógos'') é tornar linguagem as possibilidades da realidade. Tais possibilidades nenhuma forma exaure. Porque na obra poética vigoram as possibilidades do narrar poético, só a leitura que se torna diálogo se abre para o operar poético da obra. Por isso, do leitor a obra espera a escuta do narrar poético.
:- [[Manuel Antônio de Castro]]
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:Narrar é a [[tensão]] pela qual o não-saber se faz saber como palavra/linguagem a partir de e na Memória. É nesse sentido que o narrar do discurso tem a sua origem sempre na linguagem da memória e só aparentemente no discurso da língua. A língua não é sem a linguagem assim como a correnteza do [[rio]] não é sem a nascente. A nascente como tempo se dando e decorrendo (dis-curso/''dis-currere'') é a memória acontecendo. Memória, então, é a unidade de futuro do passado no presente como [[acontecer]] poético da realidade.
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:Narrar é a [[tensão]] pela qual o não-saber se faz saber como palavra/linguagem a partir de e na [[Memória]]. É nesse sentido que o narrar do [[discurso]] tem a sua origem sempre na linguagem da memória e só aparentemente no discurso da língua. A língua não é sem a linguagem assim como a correnteza do [[rio]] não é sem a nascente. A nascente como tempo se dando e decorrendo (dis-curso/''dis-currere'') é a memória acontecendo em narrativas. Toda [[narrativa]] pressupõe o tempo em seu sentido. Memória, então, é a unidade de futuro do passado no presente como [[acontecer]] poético da [[realidade]]. E esse acontecer acontece no ser [[humano]], que então se torna o [[narrador]], sendo este não apenas aquele que fala discorrendo, mas, ao mesmo tempo, se narra, acontece como [[próprio]]. Por isso todo narrar, de algum modo, é originariamente um [[diálogo]] e autodiálogo de [[proximidade]] e [[distância]]. Narrar então e narrador se identificam.
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: "O verbo narrar se formou da [[palavra]] latina ''gnarus'', aquele que conhece, pela queda do ''g-'' e com o acréscimo da terminação verbal. O radical ''gn-'' ainda se conserva na palavra portuguesa i''gn''orante. O verbo latino ''narro'' significa: fazer conhecer, [[contar]], [[enumerar]], com [[sentido]] causativo. Na [[linguagem]] familiar: [[dizer]]. Por ter as propriedades causativas de fazer conhecer através do dizer, recebeu a denominação retórica ''diegesis'' (1).
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: (1) CASTRO, Manuel Antônio de. "O narrador e a obra: a linguagem como ''medida'' ". In: MARCHEZAN, Luiz G. e TELAROLLI, Sylvia (org.). ''Cenas literárias - a narrativa em foco''. Série ''Estudos Literários'', 1, 2002. Araraquara / UNESP, p. 70.
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: "O narrar enquanto [[palavra]] se torna um narrar inaugural da [[linguagem]], não sendo esta nada mais do que o [[sendo]] se realizando naquilo que é em sua essência originária, no isto que cada [[sendo]] é, ou seja, acontecendo poeticamente. [[Sendo]] é [[desvelamento]], é [[presença]] do que não cessa de ausentar-se, no retrair-se. Narrar especulando é o ambíguo [[jogo]] do retirar para deixar [[aparecer]] o que o narrar enquanto [[especular]] – isto é, [[pensar]] – não pode dar; o que a forma do narrar enquanto [[representação]] não pode dar, nem o [[sujeito]] pode dar" (1).
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: (1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Obra de arte: presença e forma". In: -----. ''Leitura: questões''. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2015, p. 222.
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: "O como do [[conhecer]] é o que constitui a [[essência]] do [[narrar]] enquanto [[narração]] de um [[narrador]]. [[Problematizar]] o [[narrar]] e o [[narrador]], nas suas diferentes [[formas]], é trazer para cena a [[questão]] [[epistemológica]] da [[subjetividade]], seja como [[eu]] [[superficial]], seja como [[eu]] [[profundo]]" (1).
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: (1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Leitura: compreender e interpretar". In: -----. ''Leitura: questões''. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2015, p. 88.
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: "Todos os [[mitos]] são figurados em [[imagens-questões]]. Na [[literatura]], [[Capitu]], Mme. Bovary, [[Dom Quixote]], [[Édipo]], [[Riobaldo]] etc. são [[imagens-questões]]. As [[imagens-questões]] se entre-tecem com o [[poder]] ambíguo-verbal da [[metá-fora]], ou seja, literalmente: um [[conduzir]] (''fero'') no e pelo [[vigor]] do "[[entre]]" (''metá''). A [[imagem-questão]] é ambígua e retira sua [[ambiguidade]] do "[[entre]]", na medida em que a [[linguagem]] é a própria [[manifestação]] do ''[[Da-sein]]'' como [[Entre-ser]]. O [[poder]] e [[vigor]] da [[imagem-questão]] está no [[fato]] de que congrega: [[tempo]], [[linguagem]], [[memória]], [[verdade]], [[narrar]]. Por isso ela repousa, como quietude enquanto [[tempo]] [[ontológico]],  "[[entre]]" o [[ser]] escrita e o ser lida, [[entre]] o ser vista, pensada, figurada e o [[ser]] [[narrada]]. A [[imagem-questão]] é um modo concentrado e [[verbal]] de ''[[poiesis]]'', enquanto [[narrar]]. Como tal, concentra a [[fala]] de toda [[escuta]] e aguarda o [[desvelo]] [[poético]] da [[leitura]] do [[leitor]], aberto à [[escuta]] do ''[[logos]]'' ou à [[fala]] da [[Memória]] enquanto ''[[Musas]]''" (1).
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:  (1) CASTRO, Manuel Antônio de. “Heidegger e as questões da arte”. In: Manuel Antônio de Castro, (org.). ''Arte em questão: as questões da arte''. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p. 20.

Edição atual tal como 22h56min de 12 de Novembro de 2020

1

Narrar poético não é o tomar a palavra e emitir um discurso. Narrar poético é o ser tomado e possuído pela linguagem da palavra e do discurso. Um tal narrar só é narração da língua na medida em que nela se manifesta a escuta da linguagem. No narrar poético, o saber da narração se torna a manifestação originária da linguagem. É que a linguagem é o mais denso e concentrado modo de ser da realidade. Portanto, ser possuído pela linguagem (lógos) é tornar linguagem as possibilidades da realidade. Tais possibilidades nenhuma forma exaure. Porque na obra poética vigoram as possibilidades do narrar poético, só a leitura que se torna diálogo se abre para o operar poético da obra. Por isso, do leitor a obra espera a escuta do narrar poético.


- Manuel Antônio de Castro

2

Narrar é a tensão pela qual o não-saber se faz saber como palavra/linguagem a partir de e na Memória. É nesse sentido que o narrar do discurso tem a sua origem sempre na linguagem da memória e só aparentemente no discurso da língua. A língua não é sem a linguagem assim como a correnteza do rio não é sem a nascente. A nascente como tempo se dando e decorrendo (dis-curso/dis-currere) é a memória acontecendo em narrativas. Toda narrativa pressupõe o tempo em seu sentido. Memória, então, é a unidade de futuro do passado no presente como acontecer poético da realidade. E esse acontecer acontece no ser humano, que então se torna o narrador, sendo este não apenas aquele que fala discorrendo, mas, ao mesmo tempo, se narra, acontece como próprio. Por isso todo narrar, de algum modo, é originariamente um diálogo e autodiálogo de proximidade e distância. Narrar então e narrador se identificam.


- Manuel Antônio de Castro


3

"O verbo narrar se formou da palavra latina gnarus, aquele que conhece, pela queda do g- e com o acréscimo da terminação verbal. O radical gn- ainda se conserva na palavra portuguesa ignorante. O verbo latino narro significa: fazer conhecer, contar, enumerar, com sentido causativo. Na linguagem familiar: dizer. Por ter as propriedades causativas de fazer conhecer através do dizer, recebeu a denominação retórica diegesis (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "O narrador e a obra: a linguagem como medida ". In: MARCHEZAN, Luiz G. e TELAROLLI, Sylvia (org.). Cenas literárias - a narrativa em foco. Série Estudos Literários, 1, 2002. Araraquara / UNESP, p. 70.


4

"O narrar enquanto palavra se torna um narrar inaugural da linguagem, não sendo esta nada mais do que o sendo se realizando naquilo que é em sua essência originária, no isto que cada sendo é, ou seja, acontecendo poeticamente. Sendo é desvelamento, é presença do que não cessa de ausentar-se, no retrair-se. Narrar especulando é o ambíguo jogo do retirar para deixar aparecer o que o narrar enquanto especular – isto é, pensar – não pode dar; o que a forma do narrar enquanto representação não pode dar, nem o sujeito pode dar" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Obra de arte: presença e forma". In: -----. Leitura: questões. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2015, p. 222.


5

"O como do conhecer é o que constitui a essência do narrar enquanto narração de um narrador. Problematizar o narrar e o narrador, nas suas diferentes formas, é trazer para cena a questão epistemológica da subjetividade, seja como eu superficial, seja como eu profundo" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "Leitura: compreender e interpretar". In: -----. Leitura: questões. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2015, p. 88.

6

"Todos os mitos são figurados em imagens-questões. Na literatura, Capitu, Mme. Bovary, Dom Quixote, Édipo, Riobaldo etc. são imagens-questões. As imagens-questões se entre-tecem com o poder ambíguo-verbal da metá-fora, ou seja, literalmente: um conduzir (fero) no e pelo vigor do "entre" (metá). A imagem-questão é ambígua e retira sua ambiguidade do "entre", na medida em que a linguagem é a própria manifestação do Da-sein como Entre-ser. O poder e vigor da imagem-questão está no fato de que congrega: tempo, linguagem, memória, verdade, narrar. Por isso ela repousa, como quietude enquanto tempo ontológico, "entre" o ser escrita e o ser lida, entre o ser vista, pensada, figurada e o ser narrada. A imagem-questão é um modo concentrado e verbal de poiesis, enquanto narrar. Como tal, concentra a fala de toda escuta e aguarda o desvelo poético da leitura do leitor, aberto à escuta do logos ou à fala da Memória enquanto Musas" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. “Heidegger e as questões da arte”. In: Manuel Antônio de Castro, (org.). Arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p. 20.