Diferença ontológica

De Dicionrio de Potica e Pensamento

(Diferença entre revisões)
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Linha 10: Linha 10:
: ''Gato que brincas na rua
: ''Gato que brincas na rua
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:   Como se fosse na cama,
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: ''Como se fosse na cama,
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:   Invejo a sorte que é tua
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: ''Invejo a sorte que é tua
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:   Porque nem sorte se chama.''
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: ''Porque nem sorte se chama.''
: ''Bom servo das leis fatais
: ''Bom servo das leis fatais
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:   Que regem pedras e gentes,
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: ''Que regem pedras e gentes,
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:   Que tens instintos gerais
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: ''Que tens instintos gerais
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:   E sentes só o que sentes.''
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: ''E sentes só o que sentes.''
: ''És feliz porque és assim,
: ''És feliz porque és assim,
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:   Todo o nada que és é teu.
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: ''Todo o nada que és é teu.
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:   Eu vejo-me e estou sem mim,
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: ''Eu vejo-me e estou sem mim,
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:   Conheço-me e não sou eu''.
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: ''Conheço-me e não sou eu''.
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Edição de 13h35min de 20 de março de 2017

1

A lógica a que foi reduzido o logos não pode tudo abranger, pois o sentido de unidade, originado no ser, só nos advém na medida em que nos deixamos tomar pelo pensar do ser. Isto Parmênides sintetizou na famosa sentença III: "Pois ser e pensar são o mesmo". Pensar, aí, traduz o poderoso verbo noein, de onde se originou o substantivo nous, traduzido geralmente por espírito, intelecto (que se diferencia de razão). É que no pensamento (nous) o ser se torna linguagem e, dessa maneira, a linguagem (logos) se torna a casa do ser. Em sua habitação mora o ser humano. É impossível falar de linguagem sem o pensamento, pois é neste que o ser se torna linguagem. É o nous e o logos que constituem a diferença ontológica, aquela diferença pela qual somente o ser humano habita na clareira do ser (a-letheia) e, por isso, é nele que os demais entes passam a encontrar o seu sentido. É ela que diferencia o ser humano dos demais entes, sejam eles quais forem.


Manuel Antônio de Castro

2

Por ser ontológica, a questão da diferença entre o ser humano e os demais entes, não é só pensada na filosofia, mas em todas as artes também. É radicalmente uma questão poética. Eis como o grande poeta que é Fernando Pessoa a pensa num pequeno e enigmático poema de apenas três estrofes. É extraordinária a sua capacidade - própria dos verdadeiros poetas - de manifestá-la tão simples e radicalmente:
Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.
Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.
És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.

3

"Por isso, no mito, Cura é algo muito mais profundo do que os simples significados semânticos da palavra cura. Em latim, cura diz cuidado, cuidar. Em torno de Cura acontece o próprio constituir-se e plenificar-se poético-ontológico do ser humano. Nesse sentido, qualquer determinação de gênero ou cultura identitária, para a ontologia do ser humano, é reducionista. A Cura que vigora em cada ser humano, sempre de uma maneira originária, não se reduz, seja ao feminino, seja ao masculino, seja a uma identidade cultural. O que está em jogo no operar de Cura' é sempre o destino de cada ser humano, que é o acontecer de seu próprio. E este é absolutamente original para cada um. Não dá para reduzi-lo a classificações. Na regência de Cura se decide o destino do que cada um deve e consegue realizar" (1).


Referência bibliográfica:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. "O mito de Cura e o ser humano". In: -------. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 227.

3

"Então vemos que o ser humano se compõe em torno de três questões essenciais: Cura, Céu e Terra. Porém, há uma quarta, e decisiva, que as reúne e gera a controvérsia: o dar nome. A disputa em torno do nome não quer dizer outra coisa senão que é na e com a linguagem que o ser humano chega a ser humano. Isso mostra o quanto é enganoso a redução da questão da linguagem a uma faculdade no homem: a discursiva, concebendo-a como mero instrumento comunicativo. Não há o ser humano dotado de algumas faculdades. Não. Ser humano é experienciar-se na linguagem, pois é ela (e somente ela!) que reúne e compõe as demais questões. A própria Cura só acontece vigorando no poder da linguagem. Figurar o ser humano é dimensionar-se na e pela linguagem" (1).


Referência:
(1) CASTRO, Manuel Antônio de. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 330.

4

Quando da necessidade de comer para viver faço comida, preparada e transformada a partir de uma arte culinária, transformo não só a necessidade em arte, mas faço da arte uma libertação que é a dimensão da experienciação frente a toda vivência. Necessidade de comer, minha e de todo ser vivo é vivência. Fazer dela uma arte culinária é experienciação, inerente ao ser humano. É a sua diferença ontológica.


- Manuel Antônio de Castro
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