Escrita
De Dicionrio de Potica e Pensamento
(Diferença entre revisões)
(→1) |
(→3) |
||
Linha 17: | Linha 17: | ||
== 3 == | == 3 == | ||
- | : A oposição [[oralidade]]/escrita é uma falsa oposição, porque, no fundo, acontecem duas coisas: | + | : A [[oposição]] [[oralidade]]/[[escrita]] é uma falsa [[oposição]], porque, no fundo, acontecem duas [[coisas]]: |
- | : a) A questão reside na diferença entre [[imagem]] e [[conceito]], onde aquela é acontecer e esta apreende e compreende o real de um modo abstrato. | + | : a) A [[questão]] reside na [[diferença]] [[entre]] [[imagem]] e [[conceito]], onde aquela é [[acontecer]] e esta apreende e compreende o [[real]] de um modo [[abstrato]]. |
- | : b) A separação entre imagem e conceito tem de ser pensada a partir de duas instâncias: [[língua]] e [[linguagem]]. A imagem só é imagem quando radica na linguagem e o conceito só é conceito quando radica na língua como língua, ou seja, a imagem é radicando na linguagem ontologicamente ambígua, nela e por ela o [[real]] ainda acontece, ou seja, a imagem é sempre histórica, o conceito é sempre historiográfico. | + | : b) A separação entre [[imagem]] e [[conceito]] tem de ser [[pensada]] a partir de duas [[instâncias]]: [[língua]] e [[linguagem]]. A [[imagem]] só é [[imagem]] quando radica na [[linguagem]] e o [[conceito]] só é [[conceito]] quando radica na [[língua]] como [[língua]], ou seja, a [[imagem]] é radicando na [[linguagem]] [[ontologicamente]] ambígua, nela e por ela o [[real]] ainda acontece, ou seja, a [[imagem]] é [[sempre]] [[histórica]], o [[conceito]] é [[sempre]] [[historiográfico]]. |
- | : c) Pensar a escrita é também pensar a linguagem poética que se dá como imagem, [[paradoxo]] e [[ironia]], que não podem serem consideradas do ponto de vista retórico-formal. Ou seja, elas têm que ser pensadas a partir da [[história]] como acontecer (poético, de pensamento, mítico/místico, poético/jurídico/político). | + | : c) [[Pensar]] a [[escrita]] é também [[pensar]] a [[linguagem]] [[poética]] que se dá como [[imagem]], [[paradoxo]] e [[ironia]], que não podem serem consideradas do ponto de vista [[retórico]]-[[formal]]. Ou seja, elas têm que ser [[pensadas]] a partir da [[história]] como [[acontecer]] ([[poético]], de [[pensamento]], [[mítico]]/[[místico]], [[poético]]/[[jurídico]]/[[político]][[). |
- | : d) Na questão da escrita/oralidade, tanto numa como noutra, comparecem as questões fundamentais: [[natureza]], [[tempo]], linguagem, [[memória]], história. Heidegger dá um exemplo disso a propósito da questão "O que é uma coisa?" (1) e de suas respostas como vigência histórica e acontecer. Diz: "Perguntamos historicamente quando perguntamos pelo que ainda acontece, mesmo quando tal dá a aparência da já ter passado (...) Não perguntamos, em geral, pela fórmula, ou pela definição da essência da coisa. Tais fórmulas são apenas o apoio e o sedimento de posições fundamentais que num estar-aí histórico, no meio da totalidade do ente (''[[phýsis]]''). Lançou em relação a este e absorver em si mesmo?"(1). Depois, fala do real e de [[movimento]] x [[repouso]]. Ou seja: todo o parágrafo 10 é radicalmente essencial. | + | : d) Na [[questão]] da [[escrita]]/[[oralidade]], tanto numa como noutra, comparecem as [[questões]] [[fundamentais]]: [[natureza]], [[tempo]], [[linguagem]], [[memória]], [[história]]. [[Heidegger]] dá um exemplo disso a propósito da [[questão]] "O que é uma [[coisa]]?" (1) e de suas [[respostas]] como [[vigência]] [[histórica]] e [[acontecer]]. Diz: "Perguntamos historicamente quando perguntamos pelo que ainda acontece, mesmo quando tal dá a [[aparência]] da já ter passado (...) Não perguntamos, em geral, pela fórmula, ou pela [[definição]] da [[essência]] da [[coisa]]. Tais fórmulas são apenas o apoio e o sedimento de [[posições]] [[fundamentais]] que num [[estar]]-[[aí]] [[histórico]], no meio da totalidade do [[ente]] (''[[phýsis]]''). Lançou em [[relação]] a este e absorver em si mesmo?"(1). Depois, fala do [[real]] e de [[movimento]] x [[repouso]]. Ou seja: todo o parágrafo 10 é [[radicalmente]] [[essencial]]. |
Edição de 20h46min de 10 de Junho de 2020
1
- Tanto o som como a letra em relação à phýsis são já manifestação do que em si se oculta. Mas como lógos e poíesis, o som e a letra só o são na tensão linguagem / língua. O que nos pode fazer perceber o caráter originário ou não tanto de som como de letra é pensar o que significa etimologicamente o verbo latino fingere. Os seus cinco significados principais: fingir, dissimular, educar, formar e imaginar devem ser lidos no dar figura a algo pelo qual o vazio se dá como limite e muro, nisso consistindo o radical de fingere. Mas, então, aí temos a tensão radical da phýsis como desvelamento e velamento. A questão central tanto do fonema como da letra se dá na exata extensão e profundidade da acolhida e recolhimento no lógos / poíesis como alétheia de éthos e sophía, ou, então, no seu caráter restrito à tékhne sem poíesis.
2
- Pensada a escrita na sua ligação com a memória, fica impensada a sua importância para o surgimento e afirmação da pólis. "Era a palavra que formava, no quadro da cidade, o instrumento da vida política; é a escrita que vai fornecer, no plano propriamente intelectual, o meio de uma cultura comum e permitir uma completa divulgação de conhecimentos previamente reservados ou interditos (ligados aos ritos míticos e religiosos, onde a palavra era poder). Tomada dos fenícios e modificada por uma transcrição mais precisa dos sons gregos, a escrita poderá satisfazer a essa função de publicidade porque ela própria se tornou, quase com o número direito da língua falada, o bem comum de todos os cidadãos (...) Ao lado da recitação decorada de textos de Homero ou Hesíodo - que continuava sendo tradicional - a escrita constituirá o elemento de base da paidéia grega" (1).
- Referência:
- (1) VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. São Paulo: Difel, 1977, p. 36. Na página seguinte, fala da relação entre escrita e sabedoria.
3
- A oposição oralidade/escrita é uma falsa oposição, porque, no fundo, acontecem duas coisas:
- a) A questão reside na diferença entre imagem e conceito, onde aquela é acontecer e esta apreende e compreende o real de um modo abstrato.
- b) A separação entre imagem e conceito tem de ser pensada a partir de duas instâncias: língua e linguagem. A imagem só é imagem quando radica na linguagem e o conceito só é conceito quando radica na língua como língua, ou seja, a imagem é radicando na linguagem ontologicamente ambígua, nela e por ela o real ainda acontece, ou seja, a imagem é sempre histórica, o conceito é sempre historiográfico.
- c) Pensar a escrita é também pensar a linguagem poética que se dá como imagem, paradoxo e ironia, que não podem serem consideradas do ponto de vista retórico-formal. Ou seja, elas têm que ser pensadas a partir da história como acontecer (poético, de pensamento, mítico/místico, poético/jurídico/político[[).
- d) Na questão da escrita/oralidade, tanto numa como noutra, comparecem as questões fundamentais: natureza, tempo, linguagem, memória, história. Heidegger dá um exemplo disso a propósito da questão "O que é uma coisa?" (1) e de suas respostas como vigência histórica e acontecer. Diz: "Perguntamos historicamente quando perguntamos pelo que ainda acontece, mesmo quando tal dá a aparência da já ter passado (...) Não perguntamos, em geral, pela fórmula, ou pela definição da essência da coisa. Tais fórmulas são apenas o apoio e o sedimento de posições fundamentais que num estar-aí histórico, no meio da totalidade do ente (phýsis). Lançou em relação a este e absorver em si mesmo?"(1). Depois, fala do real e de movimento x repouso. Ou seja: todo o parágrafo 10 é radicalmente essencial.
- Referênicia:
- (1) HEIDEGGER, Martin. O que é uma coisa?. Lisboa: Edições 70, 1992, p. 45.
- (2) Idem, p. 49.
4
- O perdurar do lógos, enquanto um de-por e propor consiste num reunir não só o que se manifesta ao que se oculta, mas também o que se manifesta em sua poíesis. Poíesis e lógos, por isso, estão reunidos, por sua vez, enquanto tekhné. O interessante e maravilhoso é que o lógos se desdobra nessas dimensões e pode ser visto como tekhné. Mas esta não constituirá mais alétheia, porque lhe falta a poíesis. O primeiro passo para isso consistiu no isolamento do ente; o segundo, na separação entre sensível e inteligível; o terceiro, na determinação do ente e da phýsis como inteligível; o quarto, à junção da ideia com a matemática por um processo de abstração em três níveis: eîdos, ideia, máthesis, enunciado e enunciação. Ou seja, o lógos se desdobra em três dimensões: primeira como ideia, segunda como medida (máthesis) e terceira como enunciado e enunciação.
- Como isto foi possível? Por abstrações sucessivas: 1) Palavra, verbo e ser constituíam e constituem, como poíesis e alétheia, algo indissociável. Por isso, há o eiro que, como tal, é a alétheia da phýsis como desvelamento/velamento, que era o sagrado. 2) Separou-se palavra/verbo e ser/verbo na proposição. 3) Só fica o substantivo como núcleo da proposição e das qualidades sem o verbo ser/poíesis da phýsis, ou seja, como ideia/enunciado, enunciação e tekhné. 4) Com a perda da memória pode ficar só a escrita como escrita. É o que Borges tematiza no conto "O imortal" de Aleph. À perda da memória corresponde a perda do ser e do tempo.
5
- Podemos considerar a escrita como uma análise da língua falada. Platão, no Fedro, já aponta o fato de que a escrita elide a conjuntura, tornando-a por isso mesmo problemática. Ora, essa conjuntura pode ser considerada a unidade/sentido por oposição à identidade abstrata/ideia/significado. No entanto, a linguagem poética, como ambiguidade ontológica ou poética, pode, desfazendo a linguagem conceitual/analítica e instituindo a imagem/poética, retomar a unidade, porque reconquista a medida poética, a identidade concreta como busca de identidade e diferenças, de manifestação e ocultamento, ultrapassando e desfazendo o poder abstratizante e analítico da escrita. É quando se torna escritura. Daí que se vê na escrita não o signo e ideia, mas sentido e vida. Isto deve ser considerado a questão humanística, ou seja, a leitura e interpretação.
6
- "... no Egito, houve um velho deus deste país, deus a quem é consagrada a ave que chamam íbis, e a quem chamavam Thoth. Dizem que foi ele quem inventou os números e o cálculo, a geometria e a astronomia, bem como o jogo das damas e dos dados e, finalmente, fica sabendo, os caracteres gráficos (escrita)" (1).
- Referência:
- (1) PLATÃO. Fedro. 5. e. Trad. Pinharanda Gomes. Texto grego estabelecido por Léon Robin, Paris, Les Belles Lettres, 1966. Lisboa: Guimarães Editores, 1994, p. 120, 274c.
7
- "Mas, quando chegou a vez da invenção da escrita, exclamou Thoth: Eis, oh Rei, uma arte que tornará os egípcios mais sábios e os ajudará a fortalecer a memória, pois com a escrita descobri o remédio para a memória. - Oh, Thoth, mestre incomparável, uma coisa é inventar uma arte, outra julgar os benefícios ou prejuízos que dela advirão para os outros! Tu, neste momento e como inventor da escrita, esperas dela, e com entusiasmo, todo o contrário do que ela pode vir a fazer! Ela tornará os homens mais esquecidos, pois que, sabendo escrever, deixarão de exercitar a memória, confiando apenas nas escrituras, e só se lembrarão de um assunto por força de motivos exteriores, por meio de sinais, e não dos assuntos em si mesmos. Por isso, não inventaste um remédio para a memória, mas, sim, para a rememoração. Quanto à transmissão do ensino, transmites aos teus alunos não a sabedoria em si mesma, mas apenas uma aparência de sabedoria, pois passarão a receber uma grande soma de informações sem a respectiva educação! Hão-de parecer homens de saber, embora não passem de ignorantes em muitas matérias e tornar-se-ão, por consequência, sábios imaginários, em vez de sábios verdadeiros " (1).
- Referência:
- (1) PLATÃO. Fedro. 5. e. Trad. Pinharanda Gomes. Texto grego estabelecido por Léon Robin, Paris, Les Belles Lettres, 1966. Lisboa: Guimarães Editores, 1994, p. 121, 274e.