Memória

De Dicionrio de Potica e Pensamento

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: Hoje começamos a saber que o ser humano co-participa com os demais seres de ecossistemas. Mas estes não dizem respeito apenas à cadeia vital. Tudo é mais complexo. Por isso o ser humano tem sido estudado em relação a três grandes [[sistema|sistemas]]: o orgânico-vital, o social, o psíquico. Contudo, algo mais fundamental articula estes três sistemas: a memória. Mas como ela perfaz e percorre os três, não se deixando esgotar, ela vai estar ligada ao [[ser]]. E por quê? Porque inclui o [[Ética|ético]] e o [[belo]], que estão para além do [[conhecimento]], princípio que estrutura os três sistemas. Por isso o [[código]] [[genética|genético]] não pode ficar adstrito ao conhecimento, ou seja, o que é um sistema de signos para comunicar e manifestar conhecimentos. Ele tem um encontro marcado com a memória enquanto ser. É que o ser é mais radical enquanto memória, pois nesta se faz presente e dá unidade: o ético, o [[sentido]] de realização da vida. Como o conhecimento do ético não pode ser ensinado, só o conhecimento configurado numa moral, aquilo que dá sentido a todo agir é a memória enquanto sentido do ser. A moral é objeto de aprendizado. O ético é um processo de [[aprendizagem]], fundado no sentido do ser. A memória do ser é o ético e o belo, ou seja, o [[poético]].
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:Hoje começamos a saber que o ser humano co-participa com os demais seres de ecossistemas. Mas estes não dizem respeito apenas à cadeia vital. Tudo é mais complexo. Por isso o ser humano tem sido estudado em relação a três grandes [[sistema|sistemas]]: o orgânico-vital, o social, o psíquico. Contudo, algo mais fundamental articula estes três sistemas: a memória. Mas como ela perfaz e percorre os três, não se deixando esgotar, ela vai estar ligada ao [[ser]]. E por quê? Porque inclui o [[Ética|ético]] e o [[belo]], que estão para além do [[conhecimento]], princípio que estrutura os três sistemas. Por isso o [[código]] [[genética|genético]] não pode ficar adstrito ao conhecimento, ou seja, o que é um sistema de signos para comunicar e manifestar conhecimentos. Ele tem um encontro marcado com a memória enquanto ser. É que o ser é mais radical enquanto memória, pois nesta se faz presente e dá unidade: o ético, o [[sentido]] de realização da vida. Como o conhecimento do ético não pode ser ensinado, só o conhecimento configurado numa moral, aquilo que dá sentido a todo agir é a memória enquanto sentido do ser. A moral é objeto de aprendizado. O ético é um processo de [[aprendizagem]], fundado no sentido do ser. A memória do ser é o ético e o belo, ou seja, o [[poético]].
: - [[Manuel Antônio de Castro]]
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:A memória é o ponto de ligação entre o singular que cada um é e o sentido histórico-social. Mais do que ponto de ligação é a fonte e a [[origem]], pois a Memória é o que foi, é e será. Do ponto de vista atual, podemos dizer, para encaminhar a problemática do que somos, que existe uma memória natural e uma memória cultural. Mas entre as duas não há oposição. Hoje se lê a memória natural como código genético, o que é uma denominação imprópria, pois só pode haver memória natural porque já há [[linguagem]]. O conceito de [[código]] não dá conta do que é linguagem. Em vista disso a memória cultural é a memória natural manifestada como linguagem, não como linguagem cultural, mas como linguagem simplesmente, sem [[atributo|atributos]], ou seja, a manifestação da ''[[phýsis]]'' como [[''lógos'']]. A melhor compreensão de memória natural e memória cultural, uma real distinção, mas uma falsa [[dicotomia]], está na concepção mítica de ''[[génos]]''. ''Génos'', [[destino]], linguagem, [[tempo]] e [[história]] estão intimamente ligados e o entendimento de uma dessas questões pressupõe o entendimento das outras. Mas quando se trata de [[questão]], ela já se move sempre no sentido do [[ser]]. Tendo em vista isso, falar da memória é falar da memória do ser.
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:A memória é o ponto de ligação entre o singular que cada um é e o sentido histórico-social. Mais do que ponto de ligação, é a fonte e a [[origem]], pois a Memória é o que foi, é e será. Do ponto de vista atual, podemos dizer, para encaminhar a problemática do que somos, que existe uma memória natural e uma memória cultural. Mas entre as duas não há oposição. Hoje se lê a memória natural como código genético, o que é uma denominação imprópria, pois só pode haver memória natural porque já há [[linguagem]]. O conceito de [[código]] não dá conta do que é linguagem. Em vista disso a memória cultural é a memória natural manifestada como linguagem, não como linguagem cultural, mas como linguagem simplesmente, sem [[atributo|atributos]], ou seja, a manifestação da ''[[phýsis]]'' como ''[[lógos]]''. A melhor compreensão de memória natural e memória cultural, uma real distinção, mas uma falsa [[dicotomia]], está na concepção mítica de ''[[génos]]''. ''Génos'', [[destino]], linguagem, [[tempo]] e [[história]] estão intimamente ligados e o entendimento de uma dessas questões pressupõe o entendimento das outras. Mas quando se trata de [[questão]], ela já se move sempre no sentido do [[ser]]. Tendo em vista isso, falar da memória é falar da memória do ser.
: - [[Manuel Antônio de Castro]]
: - [[Manuel Antônio de Castro]]
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:"Esta Deusa, cujo ser (=nascimento-natureza) explicita o Ser-fundamento da Terra-Mãe e do Céu luminoso e fecundador,não é uma Memória individual que deva conservar (e servir a) vicissitudes e singularidades factuais restritas à história de um indivíduo, - e, sim, uma Memória Cosmogônica, é uma [[divindade]] cujo ser é dado por esse mesmo mo(vi)mento que dá ordem ao [[Mundo]] (o ''momentum'' cosmogônico)." (1)
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:"Esta Deusa, cujo ser (=nascimento-natureza) explicita o Ser-fundamento da Terra-Mãe e do Céu luminoso e fecundador, não é uma Memória individual que deva conservar (e servir a) vicissitudes e singularidades factuais restritas à história de um indivíduo, - e, sim, uma Memória Cosmogônica, é uma [[divindade]] cujo ser é dado por esse mesmo mo(vi)mento que dá ordem ao [[Mundo]] (o ''momentum'' cosmogônico)" (1).
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: (1)Torrano, JAA. "O mundo como função de musas". In: Hesíodo. ''Teogonia''. São Paulo: Iluminuras, 1992, p. 81.
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:(1) TORRANO, Jaa. "O mundo como função de musas". In: HESÍODO. ''Teogonia''. São Paulo: Iluminuras, 1992, p. 81.
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: Segundo o dicionário, memória é:
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:Segundo os dicionários correntes, memória é:
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:1º. Conservação de sensações;
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:2º. Reminiscência;
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:3º. [[Faculdade]] de conservar e lembrar estados de [[consciência]] passados, de reter ideias.  
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:O dicionário lexical-semântico se baseia na [[lógica]] dos conceitos e não deixa o vigor das palavras serem o que são: manifestação da realidade. Só manifestando, a [[palavra]] é [[verdade]] e não mera [[representação]] conceitual, significantes e significados não da realidade, mas sobre a realidade. Memória em seu vigor de palavra remonta à Mitologia. Nesta, Memória é a mãe de todas as artes. É pelo vigor da Memória (mãe) que podemos articular e manifestar o [[memorável]]. Memorável é o que permanece no fluxo das mudanças fugidias e passageiras. Por isso, memória e [[tempo]] unitário são um só, ou seja, o tempo tridimensional (passado, presente e futuro)é ontologicamente unitário como memória. Nessa [[unidade]] não há uniformidade conceitual, mas há [[identidade]] enquanto [[diferença]], ou seja, [[permanência]] e [[mudança]]. Isto é a memória.
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:O dicionário lexical-semântico se baseia na [[lógica]] dos conceitos e não deixa o vigor das palavras serem o que são: manifestação da realidade. Só manifestando, a [[palavra]] é [[verdade]] e não mera [[representação]] conceitual, significantes e significados não da realidade, mas sobre a realidade. Memória em seu vigor de palavra remonta à Mitologia. Nesta, Memória é a mãe de todas as artes. É pelo vigor da Memória (mãe) que podemos articular e manifestar o [[memorável]]. Memorável é o que permanece no fluxo das mudanças fugidias e passageiras. Por isso, memória e [[tempo]] unitário são um só, ou seja, o tempo tridimensional (passado, presente e futuro) é ontologicamente unitário como memória. Nessa [[unidade]] não há uniformidade conceitual, mas há [[identidade]] enquanto [[diferença]], ou seja, [[permanência]] e [[mudança]]. Isto é a memória.
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:"...é, em última instância, pela memória, que o ser humano se configura como um ser passível de constituir [[mundo]], ou melhor, mundos, na medida em que é pela memória que se estabelece a possibilidade da vigência da unidade. A memória é um modo privilegiado de constituição da [[unidade]] e por isso, um modo privilegiado de consolidação de toda a possibilidade de relacionamento entre o que foi o que é e o que será. Desse modo, é pela memória que o [[caos]] pode se converter em [[cosmos]]." (1)
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:"É, em última instância, pela memória, que o ser humano se configura como um ser passível de constituir [[mundo]], ou melhor, mundos, na medida em que é pela memória que se estabelece a possibilidade da vigência da unidade. A memória é um modo privilegiado de constituição da [[unidade]] e por isso, um modo privilegiado de consolidação de toda a possibilidade de relacionamento entre o que foi o que é e o que será. Desse modo, é pela memória que o [[caos]] pode se converter em [[cosmos]]" (1).
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:(1) JARDIM, Antonio. ''Música: vigência do pensar poético''. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p.124.
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:"De certa forma, a memória constitui a [[possibilidade]] enquanto possibilidade. E esta assim instituída se apresenta tanto como possibilidade retrospectiva quanto como possibilidade prospectiva. As temporalidades que habitamos são, dessa maneira, diretamente tributárias da memória, pois é com ela e a partir dela que se revelam, velam e se desvelam." (1)
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:"De certa forma, a memória constitui a [[possibilidade]] enquanto possibilidade. E esta assim instituída se apresenta tanto como possibilidade retrospectiva quanto como possibilidade prospectiva. As [[tempo|temporalidades]] que habitamos são, dessa maneira, diretamente tributárias da memória, pois é com ela e a partir dela que se revelam, velam e se desvelam" (1).
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:(1) JARDIM, Antonio. ''Música: vigência do pensar poético''. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p.124.
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:(1) JARDIM, Antonio. ''Música: vigência do pensar poético''. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p. 124.
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:"A palavra memória provém do grego ''mnéme'' que diz, mais imediatamente, ação de se lembrar, o lembrar ele mesmo, aquilo que permanece no espírito, documentos, arquivos, preceito, prescrição. Se se decompusesse ''mnéme'' em ''mne''-, que diz, em última instância, unidade, e -''me'', que pode dizer, se derivado do indo-europeu *''med'', governar, pensar, sonhar ou [[medir]], teríamos que memória diria governar, pensar ou medir a unidade. Na sua forma alongada, já no grego, ''mhn'' diz meditar, refletir, inventar, mas também, velar. A partir daí pode-se entender memória como a instância de inventar, meditar, refletir e velar, no sentido de cuidar, a [[unidade]]." (1)
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:"A palavra memória provém do grego ''mnéme'' que diz, mais imediatamente, ação de se lembrar, o lembrar ele mesmo, aquilo que permanece no espírito, documentos, arquivos, preceito, prescrição. Se se decompusesse ''mnéme'' em ''mne-'', que diz, em última instância, unidade, e ''-me'', que pode dizer, se derivado do indo-europeu *''med'', governar, pensar, sonhar ou [[medir]], teríamos que memória diria governar, pensar ou medir a unidade. Na sua forma alongada, já no grego, ''men'' diz meditar, refletir, inventar, mas também, velar. A partir daí pode-se entender memória como a instância de inventar, meditar, refletir e velar, no sentido de cuidar, a [[unidade]]" (1).
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:(1) JARDIM, Antonio. ''Música: vigência do pensar poético''. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p.126.
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:"É nessa medida que a memória é por excelência um constituidor de [[mundo]]. Ela é capaz de mundanizar e mundaniza, precisamente, na medida em que é possibilidade de [[transcendência]] de uma imersão completa no âmbito da [[natureza]]. É pela memória que se configura a possibilidade do estabelecimento da [[cultura]]. É colhendo e recolhendo que se estabelece a possibilidade da vigência do [[habitar]]." (1)
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:"É nessa medida que a memória é por excelência um constituidor de [[mundo]]. Ela é capaz de mundanizar e mundaniza, precisamente, na medida em que é possibilidade de [[transcendência]] de uma imersão completa no âmbito da [[natureza]]. É pela memória que se configura a possibilidade do estabelecimento da [[cultura]]. É colhendo e recolhendo que se estabelece a possibilidade da vigência do [[habitar]]" (1).
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:(1) JARDIM, Antonio. ''Música: vigência do pensar poético''. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p.128.
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:(1) JARDIM, Antonio. ''Música: vigência do pensar poético''. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p. 128.
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:"Memória é a condição de possibilidade do estabelecimento de todo e qualquer complexo temporal-espacial como [[unidade]]. A memória, tal como a [[música]], é a unidade dos invisíveis. Quer dizer: é pela memória que se pode estabelecer o nexo do que é, mas que ainda, ou já, não existe. A memória vela, medita, cuida, a despeito da 'muita névoa', da unidade. A memória é o cuidado, o pensar da unidade." (1)
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:"Memória é a condição de possibilidade do estabelecimento de todo e qualquer complexo temporal-espacial como [[unidade]]. A memória, tal como a [[música]], é a unidade dos invisíveis. Quer dizer: é pela memória que se pode estabelecer o nexo do que é, mas que ainda, ou já, não existe. A memória vela, medita, cuida, a despeito da 'muita névoa', da unidade. A memória é o [[cuidado]], o pensar da unidade" (1).
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:(1) JARDIM, Antonio. ''Música: vigência do pensar poético''. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p.156.
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:(1) JARDIM, Antonio. ''Música: vigência do pensar poético''. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p. 156.
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:"Na memória, tal como na [[música]], se instala sempre a dinâmica de [[som]] e [[silêncio]]. Memória é fazer vibrar a [[presença]] do que está aparentemente ausente, é fazer aparecer o que é o que tem vigência como ser, tem sentido como ser. Desse modo, se poderia entender memória como [[pensar]], tanto no sentido de propiciar, dar ensejo à [[reflexão]], quanto no sentido de colocar um penso, pôr um curativo, curar." (1)
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:"Na memória, tal como na [[música]], se instala sempre a dinâmica de [[som]] e [[silêncio]]. Memória é fazer vibrar a [[presença]] do que está aparentemente ausente, é fazer aparecer o que é o que tem vigência como ser, tem sentido como ser. Desse modo, se poderia entender memória como [[pensar]], tanto no sentido de propiciar, dar ensejo à [[reflexão]], quanto no sentido de colocar um penso, pôr um curativo, curar" (1).
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:(1) JARDIM, Antonio. ''Música: vigência do pensar poético''. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p.157.
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:(1) JARDIM, Antonio. ''Música: vigência do pensar poético''. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p. 157.
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:(1) HEIDEGGER, Martin. ''Introdução à Metafísica''. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969, pp. 154-55.
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:(1) HEIDEGGER, Martin. ''Introdução à metafísica''. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969, pp. 154-5.

Edição de 22h58min de 19 de Agosto de 2009

1

Hoje começamos a saber que o ser humano co-participa com os demais seres de ecossistemas. Mas estes não dizem respeito apenas à cadeia vital. Tudo é mais complexo. Por isso o ser humano tem sido estudado em relação a três grandes sistemas: o orgânico-vital, o social, o psíquico. Contudo, algo mais fundamental articula estes três sistemas: a memória. Mas como ela perfaz e percorre os três, não se deixando esgotar, ela vai estar ligada ao ser. E por quê? Porque inclui o ético e o belo, que estão para além do conhecimento, princípio que estrutura os três sistemas. Por isso o código genético não pode ficar adstrito ao conhecimento, ou seja, o que é um sistema de signos para comunicar e manifestar conhecimentos. Ele tem um encontro marcado com a memória enquanto ser. É que o ser é mais radical enquanto memória, pois nesta se faz presente e dá unidade: o ético, o sentido de realização da vida. Como o conhecimento do ético não pode ser ensinado, só o conhecimento configurado numa moral, aquilo que dá sentido a todo agir é a memória enquanto sentido do ser. A moral é objeto de aprendizado. O ético é um processo de aprendizagem, fundado no sentido do ser. A memória do ser é o ético e o belo, ou seja, o poético.


- Manuel Antônio de Castro


2

A memória é o ponto de ligação entre o singular que cada um é e o sentido histórico-social. Mais do que ponto de ligação, é a fonte e a origem, pois a Memória é o que foi, é e será. Do ponto de vista atual, podemos dizer, para encaminhar a problemática do que somos, que existe uma memória natural e uma memória cultural. Mas entre as duas não há oposição. Hoje se lê a memória natural como código genético, o que é uma denominação imprópria, pois só pode haver memória natural porque já há linguagem. O conceito de código não dá conta do que é linguagem. Em vista disso a memória cultural é a memória natural manifestada como linguagem, não como linguagem cultural, mas como linguagem simplesmente, sem atributos, ou seja, a manifestação da phýsis como lógos. A melhor compreensão de memória natural e memória cultural, uma real distinção, mas uma falsa dicotomia, está na concepção mítica de génos. Génos, destino, linguagem, tempo e história estão intimamente ligados e o entendimento de uma dessas questões pressupõe o entendimento das outras. Mas quando se trata de questão, ela já se move sempre no sentido do ser. Tendo em vista isso, falar da memória é falar da memória do ser.


- Manuel Antônio de Castro


3

"Esta Deusa, cujo ser (=nascimento-natureza) explicita o Ser-fundamento da Terra-Mãe e do Céu luminoso e fecundador, não é uma Memória individual que deva conservar (e servir a) vicissitudes e singularidades factuais restritas à história de um indivíduo, - e, sim, uma Memória Cosmogônica, é uma divindade cujo ser é dado por esse mesmo mo(vi)mento que dá ordem ao Mundo (o momentum cosmogônico)" (1).


Referência:
(1) TORRANO, Jaa. "O mundo como função de musas". In: HESÍODO. Teogonia. São Paulo: Iluminuras, 1992, p. 81.


4

Segundo os dicionários correntes, memória é:


1º. Conservação de sensações;
2º. Reminiscência;
3º. Faculdade de conservar e lembrar estados de consciência passados, de reter ideias.


O dicionário lexical-semântico se baseia na lógica dos conceitos e não deixa o vigor das palavras serem o que são: manifestação da realidade. Só manifestando, a palavra é verdade e não mera representação conceitual, significantes e significados não da realidade, mas sobre a realidade. Memória em seu vigor de palavra remonta à Mitologia. Nesta, Memória é a mãe de todas as artes. É pelo vigor da Memória (mãe) que podemos articular e manifestar o memorável. Memorável é o que permanece no fluxo das mudanças fugidias e passageiras. Por isso, memória e tempo unitário são um só, ou seja, o tempo tridimensional (passado, presente e futuro) é ontologicamente unitário como memória. Nessa unidade não há uniformidade conceitual, mas há identidade enquanto diferença, ou seja, permanência e mudança. Isto é a memória.


- Manuel Antônio de Castro


5

"É, em última instância, pela memória, que o ser humano se configura como um ser passível de constituir mundo, ou melhor, mundos, na medida em que é pela memória que se estabelece a possibilidade da vigência da unidade. A memória é um modo privilegiado de constituição da unidade e por isso, um modo privilegiado de consolidação de toda a possibilidade de relacionamento entre o que foi o que é e o que será. Desse modo, é pela memória que o caos pode se converter em cosmos" (1).


Referência:
(1) JARDIM, Antonio. Música: vigência do pensar poético. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p. 124.


6

"De certa forma, a memória constitui a possibilidade enquanto possibilidade. E esta assim instituída se apresenta tanto como possibilidade retrospectiva quanto como possibilidade prospectiva. As temporalidades que habitamos são, dessa maneira, diretamente tributárias da memória, pois é com ela e a partir dela que se revelam, velam e se desvelam" (1).


Referência:
(1) JARDIM, Antonio. Música: vigência do pensar poético. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p. 124.


7

"A palavra memória provém do grego mnéme que diz, mais imediatamente, ação de se lembrar, o lembrar ele mesmo, aquilo que permanece no espírito, documentos, arquivos, preceito, prescrição. Se se decompusesse mnéme em mne-, que diz, em última instância, unidade, e -me, que pode dizer, se derivado do indo-europeu *med, governar, pensar, sonhar ou medir, teríamos que memória diria governar, pensar ou medir a unidade. Na sua forma alongada, já no grego, men diz meditar, refletir, inventar, mas também, velar. A partir daí pode-se entender memória como a instância de inventar, meditar, refletir e velar, no sentido de cuidar, a unidade" (1).


Referência:
(1) JARDIM, Antonio. Música: vigência do pensar poético. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p. 126.


8

"É nessa medida que a memória é por excelência um constituidor de mundo. Ela é capaz de mundanizar e mundaniza, precisamente, na medida em que é possibilidade de transcendência de uma imersão completa no âmbito da natureza. É pela memória que se configura a possibilidade do estabelecimento da cultura. É colhendo e recolhendo que se estabelece a possibilidade da vigência do habitar" (1).


Referência:
(1) JARDIM, Antonio. Música: vigência do pensar poético. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p. 128.


9

"Memória é a condição de possibilidade do estabelecimento de todo e qualquer complexo temporal-espacial como unidade. A memória, tal como a música, é a unidade dos invisíveis. Quer dizer: é pela memória que se pode estabelecer o nexo do que é, mas que ainda, ou já, não existe. A memória vela, medita, cuida, a despeito da 'muita névoa', da unidade. A memória é o cuidado, o pensar da unidade" (1).


Referência:
(1) JARDIM, Antonio. Música: vigência do pensar poético. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p. 156.


10

"Na memória, tal como na música, se instala sempre a dinâmica de som e silêncio. Memória é fazer vibrar a presença do que está aparentemente ausente, é fazer aparecer o que é o que tem vigência como ser, tem sentido como ser. Desse modo, se poderia entender memória como pensar, tanto no sentido de propiciar, dar ensejo à reflexão, quanto no sentido de colocar um penso, pôr um curativo, curar" (1).


Referência:
(1) JARDIM, Antonio. Música: vigência do pensar poético. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p. 157.


11

A questão da relação tempo-memória se percebe bem na tensão presente/ausente: como pode alguém estar ausente e presente ao mesmo tempo e igualmente presente e ausente? Ora, este reunir de ausente/presente e presente/ausente é o lógos. Interessante que aí se faz presente o ser como presença e ausência. É o entre-ser em que o homem se apropria do que lhe é próprio. O entre-ser é a vigência da memória no homem. A esse respeito, tem a dizer Introdução à metafísica (1).


- Manuel Antônio de Castro


Referência:
(1) HEIDEGGER, Martin. Introdução à metafísica. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969, pp. 154-5.
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