Desaprender

De Dicionário de Poética e Pensamento

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: Isso é [[enigmático]] porque devemos [[aprender]] para [[desaprender]], [[ter]] para [[renunciar]], porque só renunciando chegamos a [[ser]] o que temos, porque só podemos [[ter]] o  que somos e só podemos [[ser]] o que temos. Portanto, não há uma incompatibilidade [[entre]] [[ter]] e [[ser]]. Entra aí uma terceira [[dimensão]] nesse [[jogo]] dialético [[entre]] [[ter]] e [[ser]], e [[ser]] e [[ter]]: o [[desprendimento]], a [[renúncia]], porque a [[renúncia]] não tira, dá. Nesse [[jogo]] [[dialético]] se torna também claro o [[jogo]] [[entre]] [[identidade]] e [[diferença]]. A [[identidade]] nos remete para o [[horizonte]] do [[fundar]], do [[ser]], do [[nada]]. Já a [[diferença]] nos mostra em que consiste o [[próprio]], (ter), que só o [[nada]], (ser), pode [[fundar]]. Enfim, toda [[aprendizagem]] é um [[desaprender]].
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: (1) NALIN, Pan. ''Samsara, filme de 2002.
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: (1) PESSOA, Fernando. ''Alberto Caeiro''. S. Paulo: Cia. das Letras, 2004, p. 60, 84.
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: No filme [[Samsara]], de Pan Nalin, o [[personagem]] Tashi diz: "Tem [[coisas]] que devemos [[desaprender]] para poder aprendê-las. E tem [[coisas]] que precisamos [[possuir]] para poder [[renunciar]] a elas". Trata-se, evidente, do que podemos [[compreender]] por ''possuir''. O que recebemos e possuímos unicamente é o ser que somos e nos foi feita [[doação]]. A posse de todo o resto não passa de um uso provisório. Mas o que somos são [[possibilidades]] de e para [[possibilidades]]. Toda [[realização]] de uma [[possibilidade]] implica o [[empenho]] por algo. Sem o alcance deste algo não é possível [[renunciar]] a ele. Como somos [[possibilidades]] de e para [[possibilidades]],é necessário que não nos prendamos às [[possibilidades]] realizadas, para podermos livremente nos lançar na [[realização]] de novas [[possibilidades]]. Daí a [[necessidade]] da [[renúncia]] para que nos empenhemos permanentemente naquilo que deve ser o [[empenho]] de todos os [[empenhos]]: o que somos e nos foi doado. Por isso, no filme, o mestre de Tashi diz: "O que é melhor: satisfazer mil [[desejos]] ou realizar apenas um?". Este "um" só pode ser o "[[bem]]" de todos os "bens", aquele que nos deve guiar em todas as [[procuras]]. Simplesmente porque os bens estarão sempre no âmbito dos "entes". E a [[realização]] do que somos só nos pode advir do [[Ser]]/[[Bem]]. É este o [[Amor]]. Sem dúvida nenhuma, aí a palavra [[essencial]] é: satis-fazer. "Satis", [[palavra]] latina que diz plenificar, ou seja, aquilo que nos faz plenos.
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: Fica claro que o [[desaprender]] é o [[movimento]] de arrancar, descobrir e [[desfazer-se]] das [[máscaras]], a [[persona]] que cada um [[socialmente]] e por [[hábito]] vive, para cada um [[ser]] o que [[é]] e recebeu para [[ser]].
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: (1) FOGEL, Gilvan. "O desaprendizado do símbolo (A poética do ver imediato)". In: Revista ''Tempo Brasileiro'', 171, ''Permanência e atualidade da Poética''. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 40.

Edição atual tal como 16h01min de 12 de Setembro de 2019

Tabela de conteúdo

1

Alberto Caieiro, o poeta-pensador, já disse poeticamente o que é desaprender:


Mas isto (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender . (Poema XXIV)
Procuro despir-me do que aprendi,:
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos ... (Poema XLVI) (1)

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Isso é enigmático porque devemos aprender para desaprender, ter para renunciar, porque só renunciando chegamos a ser o que temos, porque só podemos ter o que somos e só podemos ser o que temos. Portanto, não há uma incompatibilidade entre ter e ser. Entra aí uma terceira dimensão nesse jogo dialético entre ter e ser, e ser e ter: o desprendimento, a renúncia, porque a renúncia não tira, dá. Nesse jogo dialético se torna também claro o jogo entre identidade e diferença. A identidade nos remete para o horizonte do fundar, do ser, do nada. Já a diferença nos mostra em que consiste o próprio, (ter), que só o nada, (ser), pode fundar. Enfim, toda aprendizagem é um desaprender.
-Manuel Antônio de Castro.


2

No filme Samsara, do diretor indiano Pan Nalin, há a seguinte fala do monge Tashi:


Tem coisas que devemos "desaprender" para poder aprendê-las. E tem coisas que precisamos possuir para poder renunciar a elas (1)
O monge budista Tashi está na dúvida se deve sair do mosteiro ou não, para poder realizar o desejo sexual pela mulher Pema, tomado que se sente pela libido sentiendi.
(1) NALIN, Pan. Samsara, filme de 2002.


Referência:
(1) PESSOA, Fernando. Alberto Caeiro. S. Paulo: Cia. das Letras, 2004, p. 60, 84.


3

No filme Samsara, de Pan Nalin, o personagem Tashi diz: "Tem coisas que devemos desaprender para poder aprendê-las. E tem coisas que precisamos possuir para poder renunciar a elas". Trata-se, evidente, do que podemos compreender por possuir. O que recebemos e possuímos unicamente é o ser que somos e nos foi feita doação. A posse de todo o resto não passa de um uso provisório. Mas o que somos são possibilidades de e para possibilidades. Toda realização de uma possibilidade implica o empenho por algo. Sem o alcance deste algo não é possível renunciar a ele. Como somos possibilidades de e para possibilidades,é necessário que não nos prendamos às possibilidades realizadas, para podermos livremente nos lançar na realização de novas possibilidades. Daí a necessidade da renúncia para que nos empenhemos permanentemente naquilo que deve ser o empenho de todos os empenhos: o que somos e nos foi doado. Por isso, no filme, o mestre de Tashi diz: "O que é melhor: satisfazer mil desejos ou realizar apenas um?". Este "um" só pode ser o "bem" de todos os "bens", aquele que nos deve guiar em todas as procuras. Simplesmente porque os bens estarão sempre no âmbito dos "entes". E a realização do que somos só nos pode advir do Ser/Bem. É este o Amor. Sem dúvida nenhuma, aí a palavra essencial é: satis-fazer. "Satis", palavra latina que diz plenificar, ou seja, aquilo que nos faz plenos.


- Manuel Antônio de Castro


4

"Desaprender o social, o coletivo, o público e o hábito, que é este ver e interpretar publicamente, socialmente, habitualmente - isso quer pois dizer: retirar-se do uso abusado; retrair-se para o só, ensozinhar-se, ou seja, singularizar-se, fazer-se um e só. Aprender a desaprender é igual e simultaneamente aprender a ser só, é exercício de encaminhamento da solidão para a solidão - o lugar e a hora do ver" (1).
Fica claro que o desaprender é o movimento de arrancar, descobrir e desfazer-se das máscaras, a persona que cada um socialmente e por hábito vive, para cada um ser o que é e recebeu para ser.


- {{Manuel Antônio de Castro]].


Referência:
(1) FOGEL, Gilvan. "O desaprendizado do símbolo (A poética do ver imediato)". In: Revista Tempo Brasileiro, 171, Permanência e atualidade da Poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 40.
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