Julgar
De Dicionrio de Potica e Pensamento
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Edição atual tal como 15h40min de 3 de Abril de 2025
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1
- Todos os sentidos de krinein surgem para se concentrarem no ato de-cisivo de julgar, pois este se torna o lugar do dis-cernimento. E todo julgamento, pressupõe-se, julga para indicar e adotar o certo, o verdadeiro, daí estar todo julgamento relacionado a uma lei, que é o lugar da determinação do certo, do verdadeiro.
2
- A condição para alguém poder ser julgado é estar preso, no sentido de estar dependente de uma lei e seu poder, que o pode soltar ou não. Mas alguém pode ser julgado à revelia, isto é, mesmo não estando presente nem preso.
3
- A palavra portuguesa julgamento vem do verbo latino: judicare, formado de ius e dicere. Tanto uma como outra palavra têm sentidos complexos. No caso presente é necessário destacar dois aspectos. O ius “é uma regra imperativa”, “uma fórmula que rege a sorte” (Benveniste, 1969, 110) (1). Julgar, nesse sentido, consiste simplesmente em declarar (dicere), a fórmula (ius). Temos aqui dois momentos distintos. Julgamento não significa de modo algum emitir um juízo. A proposição ou proposições declarativas têm seu fundamento em algo que não provém do poder de quem diz (dicere), mas de uma outra instância: o destino. Este é o poder radical que ultrapassa o plano meramente humano. Por isso mesmo é imperativo. Ele tira o poder dele mesmo. É um poder tão radical que os próprios deuses a ele estavam submissos. É o campo insondável do sagrado. Em tal dizer vigora o poder poético. A ligação dessa atividade com o direito e a lei é posterior. É dessa ligação que surge a idéia de justiça, baseada em valores. Há, pois, dois poderes ligados ao Julgamento. Pelo primeiro, ao judex (juiz) compete simplesmente declarar (dicere) por palavras a fórmula (ius). É nessa dimensão que o poeta (aquele que manifesta a palavra das Musas) também se move: ele declara o que as Musas lhe dizem enquanto um tal dizer é o dizer de Mnemósine (Memória), pelo qual o sentido da physis, do ser-tão eclode como Linguagem, como “Mundo”. Pelo segundo, o juiz decide o que é justo e o que é injusto, mas aí a partir de um poder que advém de uma norma expressa como lei que rege as relações intramundanas. Não é um poder poético.
- (1) BENVENISTE, Emile. Le vocabulaire des institutions indo-européennes. Paris, Minuit (1969).
4
- Julgamento e vida estão profundamente ligados como travessia. Assim como o Julgamento é um processo contínuo, o mesmo se dá com a vida, ou como diz Rosa: “Viver - não é? - é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo” (1). Este é o julgamento poético de Grande Ser-tão: veredas. É fazer da vida vivida a vida experienciada, porque o que sabemos é tão pequeno em relação ao que não sabemos.
- Referência: