Julgar
De Dicionrio de Potica e Pensamento
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- | : A [[palavra]] portuguesa [[julgamento]] vem do [[verbo]] latino: ''judicare'', formado de ''ius'' e ''dicere''. Tanto uma como outra [[palavra]] têm sentidos complexos. No caso presente é necessário destacar dois aspectos. O ''ius'' “é uma regra imperativa”, “uma fórmula que rege a [[sorte]]” (Benveniste, 1969, 110) (1). [[Julgar]], nesse sentido, consiste simplesmente em declarar (''dicere''), a [[fórmula]] (''ius''). Temos aqui dois momentos distintos. [[Julgamento]] não significa de modo algum emitir um [[juízo]]. A [[proposição]] ou proposições declarativas têm seu [[fundamento]] em algo que não provém do [[poder]] de quem diz (''dicere''), mas de uma outra [[instância]]: o [[destino]]. Este é o [[poder]] [[radical]] que ultrapassa o plano meramente [[humano]]. Por isso mesmo é imperativo. Ele tira o [[poder]] dele mesmo. É um [[poder]] tão [[radical]] que os próprios [[deuses]] a ele estavam submissos. É o campo insondável do [[sagrado]]. Em tal [[dizer]] vigora o [[poder]] [[poético]]. A ligação dessa atividade com o [[direito]] e a [[lei]] é posterior. É dessa ligação que surge a [[idéia]] de [[justiça]], baseada em [[valores]]. Há, pois, dois [[poderes]] ligados ao [[Julgamento]]. Pelo [[primeiro]], ao ''judex'' ([[juiz]]) compete simplesmente [[declarar]] (''[[dicere]]'') por [[palavras]] a fórmula (''[[ius]]''). É nessa dimensão que o [[poeta]] (aquele que manifesta a [[palavra]] das [[Musas]]) também se move: ele declara o que as [[Musas]] lhe dizem enquanto um tal [[dizer]] é o [[dizer]] de ''[[Mnemósine]]' ([[Memória]]), pelo qual o [[sentido]] da ''[[physis]]'', do ''[[ser-tão]]'' eclode como [[Linguagem]], como “[[Mundo]]”. Pelo segundo, o | + | : A [[palavra]] portuguesa [[julgamento]] vem do [[verbo]] latino: ''judicare'', formado de ''ius'' e ''dicere''. Tanto uma como outra [[palavra]] têm sentidos complexos. No caso presente é necessário destacar dois aspectos. O ''ius'' “é uma regra imperativa”, “uma fórmula que rege a [[sorte]]” (Benveniste, 1969, 110) (1). [[Julgar]], nesse sentido, consiste simplesmente em declarar (''dicere''), a [[fórmula]] (''ius''). Temos aqui dois momentos distintos. [[Julgamento]] não significa de modo algum emitir um [[juízo]]. A [[proposição]] ou proposições declarativas têm seu [[fundamento]] em algo que não provém do [[poder]] de quem diz (''dicere''), mas de uma outra [[instância]]: o [[destino]]. Este é o [[poder]] [[radical]] que ultrapassa o plano meramente [[humano]]. Por isso mesmo é imperativo. Ele tira o [[poder]] dele mesmo. É um [[poder]] tão [[radical]] que os próprios [[deuses]] a ele estavam submissos. É o campo insondável do [[sagrado]]. Em tal [[dizer]] vigora o [[poder]] [[poético]]. A ligação dessa atividade com o [[direito]] e a [[lei]] é posterior. É dessa ligação que surge a [[idéia]] de [[justiça]], baseada em [[valores]]. Há, pois, dois [[poderes]] ligados ao [[Julgamento]]. Pelo [[primeiro]], ao ''judex'' ([[juiz]]) compete simplesmente [[declarar]] (''[[dicere]]'') por [[palavras]] a fórmula (''[[ius]]''). É nessa dimensão que o [[poeta]] (aquele que manifesta a [[palavra]] das [[Musas]]) também se move: ele declara o que as [[Musas]] lhe dizem enquanto um tal [[dizer]] é o [[dizer]] de ''[[Mnemósine]]'' ([[Memória]]), pelo qual o [[sentido]] da ''[[physis]]'', do ''[[ser-tão]]'' eclode como [[Linguagem]], como “[[Mundo]]”. Pelo segundo, o [[juiz]] decide o que é [[justo]] e o que é injusto, mas aí a partir de um [[poder]] que advém de uma norma expressa como [[lei]] que rege as [[relações]] [[intramundanas]]. Não é um [[poder]] [[poético]]. |
Edição de 22h16min de 18 de Junho de 2019
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1
- Todos os sentidos de krinein surgem para se concentrarem no ato de-cisivo de julgar, pois este se torna o lugar do dis-cernimento. E todo julgamento, pressupõe-se, julga para indicar e adotar o certo, o verdadeiro, daí estar todo julgamento relacionado a uma lei, que é o lugar da determinação do certo, do verdadeiro.
2
- A condição para alguém poder ser julgado é estar preso, no sentido de estar dependente de uma lei e seu poder, que o pode soltar ou não.
3
- A palavra portuguesa julgamento vem do verbo latino: judicare, formado de ius e dicere. Tanto uma como outra palavra têm sentidos complexos. No caso presente é necessário destacar dois aspectos. O ius “é uma regra imperativa”, “uma fórmula que rege a sorte” (Benveniste, 1969, 110) (1). Julgar, nesse sentido, consiste simplesmente em declarar (dicere), a fórmula (ius). Temos aqui dois momentos distintos. Julgamento não significa de modo algum emitir um juízo. A proposição ou proposições declarativas têm seu fundamento em algo que não provém do poder de quem diz (dicere), mas de uma outra instância: o destino. Este é o poder radical que ultrapassa o plano meramente humano. Por isso mesmo é imperativo. Ele tira o poder dele mesmo. É um poder tão radical que os próprios deuses a ele estavam submissos. É o campo insondável do sagrado. Em tal dizer vigora o poder poético. A ligação dessa atividade com o direito e a lei é posterior. É dessa ligação que surge a idéia de justiça, baseada em valores. Há, pois, dois poderes ligados ao Julgamento. Pelo primeiro, ao judex (juiz) compete simplesmente declarar (dicere) por palavras a fórmula (ius). É nessa dimensão que o poeta (aquele que manifesta a palavra das Musas) também se move: ele declara o que as Musas lhe dizem enquanto um tal dizer é o dizer de Mnemósine (Memória), pelo qual o sentido da physis, do ser-tão eclode como Linguagem, como “Mundo”. Pelo segundo, o juiz decide o que é justo e o que é injusto, mas aí a partir de um poder que advém de uma norma expressa como lei que rege as relações intramundanas. Não é um poder poético.
- (1) BENVENISTE, Emile. Le vocabulaire des institutions indo-européennes. Paris, Minuit,
1969.
4
- Julgamento e vida estão profundamente ligados como travessia. Assim como o Julgamento é um processo contínuo, o mesmo se dá com a vida, ou como diz Rosa: “Viver - não é? - é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo” (Rosa, 1968, 443). Este é o julgamento poético de Grande Ser-tão: veredas. É fazer da vida vivida a vida experienciada, porque o que sabemos é tão pequeno em relação ao que não sabemos.